Novos concorrentes das IES miram tecnologia

Empresas e personalidades da área financeira entram para o mercado da educação superior para capacitar profissionais em tecnologia. Formar líderes e empreendedores está entre os objetivos. Mais uma ameaça aos educadores tradicionais

A tecnologia domina os setores da economia mundial e implora por profissionais capacitados a dar soluções digitais a todo tipo de negócio, indústria e serviço. As profissões ligadas à TI estão em alta vertiginosa, mas o avanço da tecnologia é tão veloz que muitas IES têm dificuldade de atualizar cursos e currículos.

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O mercado de trabalho não está feliz com os egressos das universidades, tampouco estão eles, obviamente, por não se encaixarem nas competências e habilidades exigidas pelas vagas. Nesse contexto, empresas que nada têm a ver com educação estão colocando o pé no mercado do ensino superior. Nos EUA, o movimento employer university tem impulsionado essa tendência de faculdades diretamente alinhadas às demandas dos empregadores e que simulam o ambiente de trabalho. Na China, a Tencent, gigante do setor de telecomunicações, já oferece cursos de graduação. No Brasil, três iniciativas estreitamente ligadas ao mercado financeiro começaram suas atividades este ano. E já sinalizam uma mudança em andamento.

A XP Inc., plataforma tecnológica de investimentos e serviços financeiros, com mais de 3,5 milhões de clientes, cria a XP-Educação e oferece cursos de graduação gratuitos e pós-graduação, ambos a distância. As primeiras turmas, totalizando 400 alunos em cinco cursos, começaram a se configurar no mês de setembro, após processo seletivo que passou peneira fina nos 128 mil inscritos, número maior que o da Fuvest, com 110 mil. Paulo de Tarso, CEO da XP Educação, afirma que a ideia é preparar profissionais e talentos para as demandas que a XP terá em 2025 ou 2026.

mercado e tecnologia
Brasil precisará de ao menos dois milhões de profissionais capacitados em tecnologia

Com estrutura diferente, mas com objetivos muito próximos, entre eles, formar lideranças, os sócios do BTG-Pactual, André Esteves e Roberto Sallouti, criaram o Instituto de Tecnologia e Liderança – Inteli, que oferece cursos presenciais. É uma iniciativa filantrópica que começou a funcionar este ano no Instituto de Pesquisa Tecnológica (IPT), da USP, com turmas na graduação focadas em TI e negócios, e já realizando projetos para organiza-ções como a AMBEV, Rappi, Faculdade de Medicina da USP e para o próprio BTG-Pactual. A Link School of Business, criada a partir da visão de Álvaro Schocair, que atuou no mercado financeiro, quer formar empreendedores e administradores, funcionando como um ecossistema de empresas focado na criação de negócios.

Essas são as novas concorrentes das IES, que chegam para enfrentar o cenário desafiador: ao longo dos próximos dez anos, o Brasil precisará de ao menos dois milhões de profissionais capacitados em tecnologia. Por exemplo, devem surgir cerca de 83 mil vagas de trabalho em segurança cibernética, e haverá apenas 15,2 mil profissionais aptos a preenchê-las. Os números são do estudo “Profissões emergentes na era digital: oportunidades e desafios na qualificação profissional para uma recuperação verde”, realizado pela parceria Senai e Agência Alemã de Cooperação Internacional.

Mas, surpresa, também há IES realizando o caminho oposto, tateando o mercado de tecnologia, como a Afya – tecnologia e saúde, instituição de ensino da área médica que passou a comercializar softwares para clínicas. Os próximos anos serão, portanto, de ebulição total no ensino superior, apontando para a necessidade de mais revisões no modelo de negócios. Aspectos dessa ebulição surgem no relatório da EY-Parthenon, divulgado no início deste ano, apontando cenários para até 2030, a partir de entrevistas com gestores de IES, públicas e privadas, no mundo todo.

Além de empresas de fora do setor educacional oferecendo cursos de graduação e pós-graduação, há a efervescência dos cursos de curta e média duração para a formação de novos profissionais. Empresas como Amazon e Google, por exemplo, oferecem esses cursos.

“É uma mudança dramática, o competidor da instituição de ensino não é outra instituição de ensino, é uma instituição nativa digital, uma instituição da indústria”, afirma Eduardo Tesche, sócio da EY-Parthenon e líder para o setor da educação. 

O tsunami que se avizinha para os próximos anos não para por aí. Tesche segue configurando a turbulência. A educação a distância e a digitalização do ensino mudaram a dinâmica do mercado. O custo marginal de um novo aluno é muito baixo, o EAD traz desafios pedagógicos enormes, de retenção, por exemplo, fatores que fazem diminuir o preço das mensalidades. Por outro lado, há um custo fixo alto para criação de conteúdo, infraestrutura tecnológica etc. E há agora todas as empresas competindo por esse aluno. Isso significa que as IES terão de entregar uma experiência cada vez mais diferenciada a preços cada vez mais competitivos. Para Tesche, IES menores estão sob forte ameaça. 

Na esteira do oferecimento de cursos mais rápidos do que os de graduação, surge outro fenômeno: o protagonismo do aluno na sua estratégia de formação, dispensando o papel da IES como curadora de conteúdo. Imagine algo como uma lista de músicas preferidas no Spotify. Substitua as faixas de músicas por minicertificados de cursos rápidos, regulados pelo MEC ou não, que oferecem as mais variadas competências, absolutamente necessárias a todos os segmentos de mercado. Nos próximos anos, esse poderá ser o formato de currículo que o candidato a uma vaga de trabalho terá o orgulho de apresentar e o empregador terá o prazer de receber.

Formação estratégica

Entretanto, um pouco na contramão dessa tendência, a XP investiu R$100 milhões na criação da XP Educação, para oferecer dois cursos de graduação de quatro anos e três cursos de dois anos e meio. Paulo de Tarso, CEO da XP Educação, afirma que ainda está testando o interesse em relação à duração dos cursos. Ele conta que a opção por oferecer a graduação ao invés de cursos livres, não regulados, tem vantagens inequívocas. “É mais fácil comunicar ao mercado, ao potencial aluno, o que é essa formação, do que quando se cria um produto customizado, que não tem comparação fácil com cursos oferecidos pelo mercado. Todo mundo entende o que é uma faculdade.”

A valorização do ensino superior e a ampla faixa da população que ainda busca o diploma são características locais que reforçam a opção pela estratégia. Além disso, o mercado ainda pede certificação tradicional, checa anos de escolaridade e a instituição que emitiu o certificado:

“Quando se fala de cursos rápidos e não regulados, as possibilidades são muitas”, diz, e na cabeça do empregador ainda pairam as perguntas: quão difícil foi conseguir esse certificado?Teve processo seletivo? Você de fato tem todas as competências que aparentemente o certificado diz que você tem?”

A principal motivação para a iniciativa vem da constatação de que a defasagem entre a demanda por profissionais de TI e a existência deles no mercado vai aumentar. “Está difícil e vai piorar.” A tecnologia é pilar estratégico da XP, bons profissionais são imprescindíveis e a iniciativa é uma entre as que a frente de recrutamento da empresa leva adiante.

A estrutura de uma faculdade, “essa cadeia de valor que já funciona muito bem”, nas palavras de Tarso, traz mais vantagens. “Uma vez que formamos um núcleo de docentes para montar os projetos de graduação, conseguimos potencializá-lo para programas de pós e para cursos de rápida duração.”

São esses cursos que garantirão a sustentabilidade da iniciativa. Outra vantagem é a aproximação do aluno às demandas da empresa. “Quando a XP contrata um aluno que acabou de sair da faculdade, há uma curva de aprendizado até que, de fato, esse profissional gere valor. Grande parte da duração dessa curva tem a ver com o fato de o aluno não aprender na faculdade o que o mercado está demandando.” 

“As empresas estão usando, cada vez mais, tudo o que existe no universo digital com o objetivo de ter mais proximidade com os seus clientes. Para resolver melhor as dores identificadas, além da tal experiência líquida, ou seja, você não compara mais a solução do seu banco com outro banco. Compara com a solução de qualquer experiência, como a de uma rede social ou aplicativo. Tudo isso passou a ser parte do dia a dia das empresas e esse jeito de trabalhar tem evoluído muito rápido, as IES tradicionais não conseguiram acompanhar”, detalha.

A referência para a criação da XP veio do setor de saúde.

“Nosso exemplo é o hospital Albert Einstein, que tem sua escola conectada de maneira simbiótica: tanto o corpo docente vem do hospital, quanto grande parte dos alunos é contratada pelo Einstein.”

A decisão pela gratuidade na graduação se deu para atrair o maior número de pessoas. Cerca de 30% dos inscritos vêm do ensino médio, 40% já têm graduação completa, inclusive mestres e doutores, e 30% estão cursando outra graduação. 

O perfil de quem estuda numa determinada IES é um elemento importante. “A USP, por exemplo, por ser muito desejada acaba por ter material humano muito bom”, afirma. Era necessário, portanto, o senso de escassez. O processo seletivo foi pensado em quatro fases, de perguntas abertas a minicamp – duas semanas de aulas síncronas e desafios em tecnologia –, avaliação de especialistas que buscam profissionais de alta performance e, no final, um vestibular nos moldes tradicionais. A XP Educação garantiu a diversidade por meio de ações afirmativas, destinando 200 vagas de ampla concorrência, 100 vagas para pessoas negras e 100 vagas para mulheres.

Novos líderes

A criação do Inteli teve motivação pessoal dos sócios do BTG-Pactual, além da certeza de que todas as organizações terão a necessidade de contratar talentos em tecnologia. Outra provocação que resultou na iniciativa foi a de que empresas internacionais não investem no Brasil por conta da falta desses talentos. Em funcionamento desde o início do ano, o Inteli oferece quatro cursos na área de computação. “Por isso, no currículo, 70% das competências trabalhadas são de computação, mas nossa missão é formar futuros líderes área de tecnologia, então, outros 20% das competências trabalhadas são de negócios, e 10% dedicadas ao desenvolvimento de competências comportamentais de liderança”, detalha Maíra Habimorad, presidente do Inteli. O curso de quatro anos, presencial, é considerado o melhor formato. A formação de líderes requer tempo e oportunidade de aprofundamento. 

A metodologia de ensino é baseada em projetos, com disciplinas que se conectam para oferecer suporte ao desenvolvimento desses projetos.

“Uma característica do modelo acadêmico do Inteli é a intimidade entre teoria e prática. O que os alunos estudam está relacionado ao projeto que estão desenvolvendo. Isso demandou um trabalho de mais de um ano na construção da lógica do currículo, que combina projetos transdisciplinares”, explica Maíra.

O processo seletivo busca jovens transformadores que, além de conhecimentos mínimos de lógica e matemática, já tenham realizado algo na vida e com ambição de realizar mais coisas, e interesse no trabalho em grupo. A mensalidade custa R$ 5.500,00, mas há modalidades de bolsas que podem, inclusive, oferecer ajuda de custo para o aluno morar em São Paulo.

A distância entre o recém-formado e o mercado é problema no mundo todo e o aprendizado por competência ou projeto é defendido hoje como o formato pedagógico que mais resulta para estreitar interesses e, em consequência, para o sucesso da IES. No Brasil, as mudanças ainda são lentas, mas não deixarão de acontecer. Às IES caberá lidar com cenários imprevisíveis. Tesche faz a seguinte provocação: e se o preço da mensalidade for zero?

No mundo já existem IES que cobram mensalidades de acordo com o sucesso profissional do aluno. Os recursos para a sustentabilidade das IES podem ter novas fontes. A dobradinha universidade/empresa talvez configure esse cenário. A pesquisa, um âmbito em que as IES precisam investir, pode se beneficiar desse contexto. “Ainda se tem a impressão de que a instituição pública não se aproxima do setor privado, mas não é fato. Essa relação vem se ampliando”, diz Tesche. “Se as universidades começarem a se aproximar do mercado privado para fazer parcerias, com visão de se transformarem num centro de resultados, uma quantidade enorme de recursos pode ser liberada”, finaliza.

Fonte da Notícia: Revista Ensino Superior