O ensino superior pode ser uma commodity?

Para responder a essa pergunta, precisamos levar em conta que a ideia de ensino superior nos remete à produção de conhecimento e à formação de pessoas cujo valor agregado – que as torna capazes de desempenhar uma atividade profissional, resolver problemas e exercer sua plena cidadania – não pode ser padronizado. Agregar valor à formação do aluno exige mais do que garantir acesso a um produto produzido em larga escala, com um caráter homogêneo e padronizado, cujo custo depende da demanda, do preço e da conjuntura econômica do mercado, como é o caso de uma commodity.

No caso do ensino superior, o estudante pode até achar que todo produto é igual, assim como ele pode colocar combustível em qualquer posto e a única diferença é o preço final na bomba. Mas eu entendo que os gestores de IES não podem pensar dessa forma, e se contentar em ofertar commodities para o mercado educacional como defendem alguns dealers desse mercado.

É discutível que uma IES se sinta confortável em oferecer um produto educacional homogêneo e padronizado, que pode limitar a criatividade e a inovação de professores e estudantes. Ao tornarem-se consumidoras de commodities, as IES correm o risco de lentamente abdicarem de ser instituições que geram conhecimento e fomentam novas ideias. Pode ser um exagero, mas será que caminhamos para uma situação em que nossas instituições de ensino superior se tornarão apenas “intermediárias” entre as empresas que produzem produtos educacionais e os estudantes consumidores?

No EAD, por exemplo, as IES tendem a tornar o conteúdo e o modelo acadêmico mais homogêneo e a fazer produção em larga escala. Nessa perspectiva, muitas IES passaram a optar pela compra de conteúdo padronizado, em função do custo e da complexidade em produzir o seu próprio conteúdo.

Afinal, não são todos os professores que conseguem produzir bons conteúdos, ou que possuam tempo para a sua produção. Essa é uma atividade que requer conhecimento pedagógico, capacidade de redação, experiência com o aprendizado dos estudantes e conhecimento sobre as tecnologias educacionais disponíveis.  Esses elementos servem de justificativa para os que defendem a compra de conteúdos de empresas A ou B: é mais barato comprar do que produzir. A “comoditização” do conteúdo torna mais fácil o controle, o custo é menor e é possível reduzir o número de pessoas envolvidas nas atividades acadêmicas, enfim, há um ganho em escala.

Mas padronizações podem funcionar como uma camisa de força, assim como as apostilas dos cursinhos preparatórios para o vestibular. E, ainda que os possíveis danos das padronizações possam ser reduzidos pela criatividade, pelas metodologias ativas, pelo professor engajado com o aprendizado, a IES corre o risco de oferecer conteúdos mais iguais do que diferentes.

Há anos temos assistido à “comoditização” do ensino superior, através dos currículos que possuem uma estrutura semelhante, do uso dos livros e apostilas, e da repetição dos conteúdos e do modelo de aula. Mais recentemente esse processo tem se caracterizado pela compra de conteúdos e pelo uso de plataformas. Mas, se as IES são semelhantes, como o estudante vai decidir onde estudar?

O conteúdo oferecido por uma IES deve representar um conjunto de valores e atitudes que se espera dos estudantes, além de habilidades e competências que garantem a sua formação acadêmica, e deve expressar uma concepção de currículo e, obviamente, um modelo acadêmico.  Portanto, a sua compra requer cuidado e análise. O que serve para uma IES não necessariamente pode servir para outra.

Sabemos que as IES de prestígio, que são referência nacional e internacional, e que agregam valor ao ensino superior, prezam em manter sua identidade, cuidando do seu modelo acadêmico, desenhando seu projeto pedagógico com rigor e fomentando a inovação.  Obviamente elas também utilizam produtos que são commodities, mas com sabedoria.

Acredito que quem defende que o conteúdo pode ser uma commodity, e não apresenta soluções para melhorar o aprendizado e engajamento do estudante, contribui para o empobrecimento acadêmico da IES.  O argumento de que conteúdo não é um “negócio” da IES, o que permitiria à instituição focar mais no preço do que no modelo acadêmico, pode encantar alguns gestores, especialmente em tempos de crise. Mas, nesse caso, o debate pode ficar reduzido à discussão de uma planilha de custos. Padronizar pode ser uma boa solução administrativa e financeira, mas não é necessariamente uma boa solução acadêmica.

Sem dúvida, é preciso reduzir custos, melhorar a eficiência da IES e superar os momentos de crise. Mas, nesse caso, eu sugiro que os gestores organizem redes de cooperação, busquem IES com perfil e identidade semelhante e passem a dividir os custos, mas não caiam na tentação de terceirizar a formação dos estudantes sem antes discutir o modelo acadêmico.  É importante que eles evitem que os conteúdos virem penduricalhos sem vínculos com o projeto acadêmico, e que não confundam emprego da tecnologia com educação e inovação.

As commodities podem gerar o esgotamento do ensino superior. E a perda do valor do diploma pode ser o resultado dessa decisão.  Não basta uma IES dar o diploma no final da graduação, se essa formação não tiver valor agregado. Nesse caso, teremos egressos com diploma, mas sem atividade profissional.

Espero que aqueles que tomam as decisões nas IES continuem prestando atenção na última linha da planilha, que indica o resultado financeiro, pois sem recursos financeiros uma IES não funciona. Mas, por outro lado, as IES precisam de gestores-educadores, que reconhecem o papel, o valor e a função do ensino superior, e que percebam que, se avançarmos na “comoditização”, podemos colocar em perigo o valor e a própria relevância do ensino superior.

*Fábio Reis, diretor de Inovação e Redes do Semesp e presidente do Consórcio STHEM Brasil

Fonte: Estadão online