Educação profissional ainda carrega desafios

Por Alexandre Sayad*: Para onde quer que olhemos hoje, há inteligência artificial. Nas redes sociais, sites, chatbots, no banco, no comércio e na educação. Mas as interfaces tecnológicas não são as únicas que se esbaldam nesse modelo de propósito geral: os bastidores da indústria, comércio, serviços e agropecuária sofrem transformações intensas. É a realidade do trabalho 4.0.

Além de programar, operar essa tecnologia tem exigido formação e desenvolvimento de novas habilidades e competências não somente no alto escalão das empresas; todos os trabalhadores se encontram numa encruzilhada de mudança na formação inicial e continuada, que alguns autores costumam comparar com aquela oriunda da Revolução Industrial.

Por um lado, os currículos regulares no mundo todo têm sofrido mudanças, tal qual as propostas pela BNCC (Base Nacional Comum Curricular) e o novo ensino médio, que procuram aproximar os conhecimentos e habilidades contemporâneas da realidade dos estudantes.

Mas há um campo pouco discutido e ainda cercado de mitos e preconceitos no Brasil: a educação profissional ainda carrega estigmas do passado e procura se reinventar para abraçar as demandas da inteligência artificial e seus derivados.

Enquanto por aqui a porcentagem de estudantes que cursam o médio juntamente com o técnico não chega a 20%, países da OCDE costumam ostentar números acima dos 70%. O desenvolvimento da matriz educacional brasileira costuma explicar essa disparidade.

Para começar, a educação superior nem sempre foi um horizonte visível a olhos nus para grande parte da juventude no Brasil. Por anos, o acesso a uma universidade pareceu distante e repetiu a história da educação básica até as últimas décadas do século passado: uma miragem para a população mais pobre, um oásis para quem tinha recursos.

Instrumentos de democratização de acesso, como o Enem (Exame Nacional do Ensino Médio), vieram após uma expansão acelerada de faculdades no final da década de 1990, quando o mercado privado dominou boa parte da demanda reprimida. Instrumentos de avaliação tentaram controlar a qualidade dos cursos e mecanismos de financiamento para estudantes brotarem aos montes.

Por outro lado, a educação profissional e tecnológica, conhecida como EPT, foi sempre vista com desconfiança pelo mesmo público acadêmico. Para muitos educadores, trata-se de uma maneira superficial de responder a demandas do mercado de trabalho. Muitos não veem diálogo de seu currículo com as questões centrais da adolescência, ou com outros campos propedêuticos de importância para a formação humanista do indivíduo. Há para essa parcela de educadores um excesso de tecnicidade e crescimento profissional limitado do egresso.

Entretanto, é importante lembrar que durante muito tempo a ETP exerceu o papel fundamental de transformar vidas de famílias de baixa escolaridade cujos membros viam poucas possibilidades de adentrar ao ensino superior.

O ensino técnico promoveu mudanças sociais marcantes e rápidas para quem teve oportunidade de cursar. De maneira similar ao ensino médio regular, o profissionalizante também acabou por criar bolsões de excelência, sobretudo dentro do Sistema S (Sesi, Sesc e Senai).

Em outras palavras, não houve universalização de acesso, mesmo a indústria pressionando os governos por mais vagas – daí os números de baixa adesão apresentados no início do texto.

A própria indústria, o comércio e a agropecuária moldam os cursos de acordo com a demanda no mercado; agem muito proximamente às escolas, seja no fornecimento de equipamento ou na formação de professores e instrutores; encontrar uma oportunidade de emprego logo após a conclusão é algo comum para os estudantes. As empresas caçam talentos nas portas das escolas.

Hoje os dilemas e desafios da educação profissional encontram um terreno fértil para derrubar a imagem de formação “menos importante”. O novo ensino médio propõe um itinerário formativo específico que integra a formação profissional ao desenho regular – uma maneira de agregar o olhar propedêutico e humanista.

Por outro lado, quem saiu na frente nessa integração são as mesmas organizações do Sistema S que já primavam pela qualidade antes.

A tendência de unir ensino médio e formação profissional é global. A China, por exemplo, em 10 anos, colocou o equivalente quase à totalidade da população brasileira (170 milhões de jovens) dentro das escolas vocacionais, como são chamadas por lá.

A Rússia e a Europa promoveram recentes transformações e ampliações de sua educação profissionalizante. Para acelerar o processo, apostam em festivais, “hackathons” e outras competições nacionais (chamadas de “WorldSkills”) que estimulam o desenvolvimento de habilidades socioemocionais que deem conta de tecnologias como a inteligência artificial.

A aceleração do uso de mídias digitais por conta da pandemia da covid-19 é ainda um novo elemento para compor o complexo desafio da profissionalização. Segundo uma recente pesquisa com 1.000 indivíduos acima de 18 anos, realizada pela GetCourse, edtech internacional, em conjunto com a plataforma Toluna, 48% deles realizaram cursos profissionalizantes em plataformas de e-learning. É uma questão de tempo e redução de desigualdade de acesso para essa realidade se aproximar dos adolescentes em formação profissional.

Em suma, é importante que a qualidade da educação profissional do Senai ou Sesi, ou Senac seja expandida em escala para as redes públicas – esse é um caminho que se vislumbra. Entretanto, é fundamental garantir diversidade e acessibilidade a toda a matriz de educação superior brasileira: da universidade aos cursos livres, passando pelos profissionalizantes. O jovem precisa cursar aquilo que cabe no seu sonho – e essa escolha deve ser exclusivamente dele.

Alexandre Le Voci Sayad é jornalista, educador, diretor da ZeitGeist e co-chairman da UNESCO MIL Alliance. Este artigo foi publicado originalmente na Plataforma Educação, o qual é colunista.

Fonte da Notícia: REVISTA ENSINO SUPERIOR