Até o fim de 2020, o Brasil poderá jogar mais 8 milhões de trabalhadores no desemprego, elevando o contingente para 20 milhões, devido à crise causada pela pandemia do novo coronavírus. O tombo afeta todos os setores da economia, mas pode ser mais grave para quem já vivia sua crise particular. É o caso da educação superior. Em momentos de incerteza e perda de renda, muitos estudantes adiam o início de um curso, paralisam a faculdade para economizar na mensalidade ou simplesmente deixam de pagar.
Dados da consultoria Atmã Educar indicam queda de 17% no total de novos alunos previstos para o ano — de 2,5 milhões para 2,06 milhões. O número de matrículas de meio de ano deverá cair 70%. De 625.000 novos alunos previstos, apenas 180.000 devem de fato efetivar a matrícula. O momento eleva a outro patamar os dilemas que já rondavam as empresas do setor. Nos últimos anos elas precisaram lidar com a desidratação do Fundo de Financiamento Estudantil (Fies). Também viram a concorrência aumentar e protagonizaram uma guerra de preços no ensino à distância (EAD). Agora o cenário é mais crítico. “Existe um medo no mercado de que a depreciação das condições macroeconômicas faça a pergunta na cabeça do potencial aluno dessas instituições mudar. Antes ele se perguntava se estudaria de forma online ou presencial. O medo é que ele passe a questionar se vai estudar ou não”, afirma Ilan Arbetman, analista da corretora de valores Ativa Investimentos.
Se a economia vai levar um tempo para se recuperar, as instituições de ensino superior devem amargar um período mais longo de vacas magras, em especial nos cursos presenciais, mais caros. Em relatório recente, o banco de investimento suíço UBS disse esperar alguma recuperação de consumo nesse segmento apenas para o segundo semestre de 2021. Um estudo da consultoria Educa Insights mostrou que, entre o público interessado em iniciar um curso superior presencial, só 7% pretendiam começar ainda neste ano. Entre os que já estudam, 47% dos alunos presenciais disseram que correm o risco de desistir do curso devido à pandemia, ante 36% dos alunos de cursos à distância. A pesquisa apontou ainda que 29% dos entrevistados tiveram sua renda altamente afetada pela pandemia e 14% dos entrevistados não tinham pagado a mensalidade do mês de maio nem sabiam quando pagariam. No mês anterior, os inadimplentes eram 8%. “Fizemos pesquisas nos três últimos meses e agora é possível ver que a realidade chegou. Nesse cenário, quem reagiu rápido se saiu melhor”, afirma Daniel Infante, diretor da Educa Insights.
Entre as adaptações necessárias às faculdades está o investimento em tecnologia para oferecer os cursos de forma remota, uma vez que as aulas presenciais foram todas suspensas. Quem conseguiu se adaptar vai abraçar a mudança mesmo quando o isolamento social terminar. Até mesmo instituições tradicionais, mais avessas às novidades tecnológicas, estudam aumentar as aulas pela internet. “Nossa tarefa é entrar no século 21 e ampliar nossas bases tecnológicas. Mas não temos intenção de oferecer cursos massificados totalmente à distância. A vida universitária é muito mais do que o conteúdo das aulas, e isso o EAD não faz”, afirma Maria Amalia Andery, reitora da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo. Antes da pandemia, a instituição oferecia apenas duas disciplinas à distância. Na Fundação Getulio Vargas, aulas à distância antes eram praticamente restritas à pós-graduação. Agora o modelo deve ser revisto. “Teremos mais aulas mediadas por tecnologia, o que nos abre muitas possibilidades”, afirma Antônio Freitas, pró-reitor da FGV.
Com alunos, professores e instituições mais abertos às aulas à distância, a tendência é que os cursos híbridos, com parte das aulas presenciais e parte online, se fortaleçam ainda mais. No ano passado, o Ministério da Educação passou a permitir que os cursos presenciais tenham até 40% das aulas online, abrindo mais espaço para o modelo. Essa é uma boa notícia para as grandes empresas do setor, que saíram na frente nos investimentos em tecnologia nos últimos anos. “A expectativa que tínhamos de que o EAD fosse 50% do ensino pode ser antecipada”, afirma Jânyo Diniz, presidente da Ser Educacional. “Os alunos que tradicionalmente seriam do presencial vão aceitar o ensino à distância, seja porque percebem que a qualidade é tão boa quanto, seja porque não têm condições de pagar o presencial”, afirma Roberto Valério, diretor-presidente da Kroton, divisão de educação superior da Cogna. No entanto, o estudante também deve passar a exigir mais das aulas à distância. “Com a pandemia, o estudante ficou mais exigente em relação ao digital. Apostamos em cursos com um EAD mais humanizado, que garanta um vínculo entre as pessoas. Os cursos muito focados em volume terão de se reinventar”, afirma Denise Campos, vice-presidente acadêmica da Ânima Educação.
A má notícia é que somente a expansão das aulas à distância poderá não resolver os problemas dessas instituições, que tiveram um fundamental impulso para crescer quando o Fies foi reformulado — a partir de 2010, pelo então ministro da Educação, Fernando Haddad — e acompanharam o declínio do programa nos anos seguintes. Enquanto o número de financiamentos caiu quase 90% de 2014 a 2019, para 85.000, o montante repassado pelo governo recuou de 13,6 bilhões de reais para 8 bilhões de reais. Para mitigar as perdas, algumas instituições lançaram o financiamento próprio, o que amplia seus riscos financeiros. “Há casos em que a inadimplência chega a 40%. No Fies, esse risco ficava com o governo”, afirma Romário Davel, sócio da Atmã Educar. Outra opção é terceirizar o serviço. A empresa Pravaler começou a oferecer crédito estudantil em 2006, e atualmente opera 80% dos financiamentos desse tipo no país. Para reduzir a inadimplência, desenvolveu um sistema complexo de análise de crédito. “Nosso modelo tenta prever a chance de o estudante concluir o curso naquela faculdade”, afirma o presidente da Pravaler, Carlos Furlan.
Os estudantes que conseguiram o financiamento do governo no auge do programa já estão se formando, deixando órfãs algumas instituições. A Cogna é um exemplo emblemático. Em 2014, então chamada Kroton, chegou a ter 259.000 estudantes financiados pelo Fies, o que representava 28% de sua base de alunos. Nos cursos presenciais, essa fatia subia para 61%. No ano passado, seus alunos do Fies somavam 42.000, uma redução de 84%. Na Yduqs, a antiga Estácio, os estudantes financiados pelo governo eram 123.000 em 2014, 28% do total de alunos e 42% dos presenciais. Em 2019, o número dimin para 41.000, uma redução de 67%. Quando a torneira secou, as empresas sentiram o baque. A margem de lucro da Cogna, de 35% em 2016, caiu para 3% em 2019. Na Ser Educacional, 42,7% dos alunos eram financiados pelo Fies em 2014, ano em que a companhia teve 30% de margem de lucro. No ano passado, a proporção de alunos do Fies caiu para 19%, e a margem foi de 11%. A companhia que se recuperou mais rapidamente da redução do Fies foi a Yduqs, cuja margem de lucro em 2018 e 2019 foi de 18%, a mesma registrada em 2014. “Hoje, a principal fonte de financiamento para o aluno é ele próprio ou a família. Com a redução do Fies, muito menos gente teve acesso à educação e nós perdemos mais de 1 bilhão de reais em receita, o que foi compensado com outras frentes”, diz Eduardo Parente, presidente da Yduqs.
Sem os recursos do Fies, as instituições do setor partiram com força para o ensino à distância, com cursos mais baratos. A questão é se esse modelo se sustenta em um cenário em que a pandemia vem corroendo a renda das famílias. O plano B nunca foi tão importante para essas instituições. E cada uma delas optou por um caminho. Capitalizadas, essas companhias devem aproveitar o momento de crise para fazer aquisições de instituições menores que estejam em dificuldades, para desse modo reforçar seu plano B. Na Yduqs, a saída foi reforçar a qualidade do EAD, adquirir instituições de renome, com cursos mais caros, e ampliar a oferta de cursos de medicina. A criação da holding Yduqs, em substituição ao nome Estácio, veio para permitir a manutenção de marcas fortes que seriam adquiridas. Em abril, a companhia concluiu a compra da Adtalem, dona do Ibmec, onde um curso de administração custa cerca de 4.600 reais por mês, dez vezes mais caro do que o curso de administração na Estácio. No início de junho, a Yduqs comprou também o Grupo Athenas, com a possibilidade de abrir 300 vagas em cursos de medicina. A Ânima foi por um caminho semelhante, e atualmente se baseia em nomes de peso: é dona da HSM, focada em gestão, opera o Le Cordon Bleu São Paulo, com foco em gastronomia, e também tem investido em cursos de medicina. A aposta no segmento se mostra especialmente oportuna no momento atual. Ainda que a crise causada pelo novo coronavírus tenha abalado praticamente todo o setor, na Afya, que tem foco apenas no segmento médico, a crise ainda não chegou. “Ouso dizer que a demanda tem aumentado durante a pandemia, não temos problemas de preenchimento de vagas”, afirma Virgilio Gibbon, presidente da Afya. Além da graduação, a companhia oferece cursos de especialização na área médica e uma plataforma online para complementar os estudos.
Em outra frente, a Cogna tem apostado na expansão de suas operações por meio da educação básica. Em 2018, ainda como Kroton, comprou a Somos Educação, num movimento que consolidou sua guinada nessa direção. No ano seguinte, criou a holding Cogna e dividiu os negócios em quatro frentes, duas voltadas para a educação superior e duas voltadas para o ensino básico. A Saber é a divisão de escolas, com 52 unidades e 32.000 alunos. A Vasta é focada em sistemas de ensino e material didático para escolas parceiras. A divisão tem ajudado as escolas a manter as aulas no ambiente virtual durante o isolamento social e se prepara para abrir o capital ainda neste ano, assim que a pandemia permitir. “O digital traz muitas oportunidades para a educação básica. Estamos em um momento muito rico, nunca estivemos tão próximos das escolas parceiras”, afirma Mario Ghio, presidente da Somos, que se tornou o braço de conteúdo da Vasta. No ano passado, 27% da receita da Cogna veio de sua divisão de educação básica. A Arco Educação também aposta nesse segmento e subiu 87% na bolsa de valores Nasdaq desde o IPO em 2018, ante uma valorização de 19% do índice Nasdaq. No mesmo período, a Cogna caiu 47%.
Na Ser, a alternativa para diversificar passa pelos cursos livres. A companhia lançou em maio sua plataforma de cursos livres, a Gokursos, que estava prevista para o segundo semestre deste ano, mas foi adiantada devido à pandemia. “A ideia é ser um marketplace de educação continuada com cursos de todas as áreas, de cabeleireiro a cirurgia vascular”, afirma Jânyo Diniz, presidente da Ser. A plataforma disponibilizou de forma gratuita 40.000 vagas em seus cursos, as quais foram preenchidas em apenas dez dias — uma amostra da demanda potencial para o produto. Também conta com cursos modulares, que podem ser usados como crédito em cursos de graduação ou pós. A vertente dialoga com outro produto desenhado pela companhia: os cursos de graduação com duração de um ano e meio. Nessa modalidade, o aluno não tem férias, o que deixa o curso mais barato e rápido. A expectativa é que, com a economia em crise, aumente a demanda dos alunos por formação profissional para mudar de área de atuação. O formato segue uma tendência de revisão do modelo de aulas nos cursos de graduação. “A sala de aula tradicional é um formato muito antigo. Com a tecnologia, é possível ter aulas mais curtas, num modelo mais parecido com os ted talks, e disponibilizar conteúdos em outros formatos”, afirma Celso Niskier, presidente da Associação Brasileira de Mantenedoras de Ensino Superior. As mudanças trazidas pela pandemia para essas empresas vão bem além das aulas pelo computador.
O desafio no ensino básico
O segmento privado de educação básica (ensino infantil, fundamental e médio) é resiliente em tempos de crise. Ao todo, 19% das matrículas da educação básica no Brasil estão no setor privado, o que corresponde a cerca de 9 milhões de alunos. Se o orçamento aperta, as famílias desses estudantes procuram cortar outros gastos antes de romper o vínculo com a escola durante o ano letivo. Com a pandemia causada pelo novo coronavírus não está sendo diferente. O setor tem maior estabilidade em comparação a outros, como turismo e eventos. A novidade nesta crise é que agora as escolas precisaram lidar também com uma mudança repentina na forma de ensinar. “Pela primeira vez em muitos anos, as escolas precisaram sair do modo tradicional e se reinventar, migrando para plataformas digitais. Foi um desafio enorme, mas a boa surpresa é que a grande maioria das instituições de ensino conseguiu”, diz Alfredo Pinto, presidente da consultoria Bain & Company para a América do Sul.
No grupo de educação básica Elite Rede de Ensino, com 40 unidades e mais de 33.000 alunos, o processo de transição para o ensino remoto foi uma “operação de guerra”, segundo o diretor-geral Jackson Miguel. Apesar de as escolas do Elite utilizarem uma plataforma digital de conteúdo, o ensino era baseado na interação presencial entre alunos e professores. “Ter a plataforma nos ajudou neste momento, principalmente na parte de comunicação, até a gente conseguir virar completamente a operação”, afirma Miguel. Hoje, os alunos participam de aulas ao vivo com professores, em um horário reduzido, das 8 horas às 11h30, e complementam o tempo de estudo com material online no contraturno. “Em casa, o aluno tem mais ladrões de atenção do que dentro da sala de aula”, diz o diretor.
Os obstáculos ao ensino remoto não são apenas pedagógicos. Para garantir a estabilidade das aulas no meio digital, as escolas precisaram investir em equipamentos para professores e em servidores mais robustos. Na Luminova, rede de franquias de baixo custo do Grupo SEB, o investimento em tecnologia chegou a 200.000 reais nos primeiros meses de isolamento social. Para os alunos que não tinham equipamentos para assistir às aulas em casa, a escola emprestou tablets e orientou as famílias a reforçar o plano de telefonia móvel, aproveitando os descontos oferecidos pelas operadoras. “Oferecemos reforço quando o aluno perde alguma aula por causa da rede”, diz Luiz Magalhães, diretor acadêmico da Luminova.
No Grupo Marista, que administra 42 escolas, 8.000 alunos estudam em unidades sociais, voltadas para as famílias que ganham até três salários mínimos por mês. Muitos deles não conseguiam acessar o conteúdo por meio da internet, então o colégio viabilizou a entrega do material por redes sociais, que costumam ser gratuitas em planos de telefonia móvel, e imprimiu propostas de atividades para os estudantes. Mesmo com os esforços das escolas para seguir com o currículo durante o período de isolamento, a inadimplência e a evasão subiram. No Grupo Positivo, que administra 17 escolas, com um total de 14.000 alunos, a inadimplência subiu 20% até junho. Segundo o diretor-geral Celso Hartmann, para ajudar as famílias com dificuldades financeiras o grupo negociou descontos de até 50% no valor da mensalidade. Apesar da queda no faturamento, o Positivo está em uma situação financeira mais confortável do que a maioria das escolas menores.
Um estudo feito em maio pela consultoria Explora a pedido da União pelas Escolas Particulares de Pequeno e Médio Porte mostra que mais de 95% das escolas já perderam alunos e que a evasão está em torno de 10% hoje. A redução no faturamento estimada para o mês de maio, em média, foi de 50%, somando os atrasos nos pagamentos e os descontos concedidos. “A maior parte dos custos é com a folha de pagamentos”, diz Tadeu da Ponte, professor do Insper e organizador do movimento pelas escolas particulares de pequeno porte. Com o agravamento da crise, a tendência é que as escolas de bairro fechem ou sejam adquiridas por grupos maiores, cujo custo de operação é mais baixo por centralizar serviços e profissionalizar a gestão financeira e administrativa.
“A crise é um acelerador de futuro. O fechamento de escolas de bairro vai acelerar fusões que não aconteceriam em cenários normais”, diz Thamila Zaher, diretora executiva do Grupo SEB, que tem mais de 45.000 alunos na rede própria e mais de 200.000 nas escolas parceiras. A retomada das atividades presenciais, quando acontecer, será um novo desafio financeiro e pedagógico. No Grupo Bernoulli, de Belo Horizonte, com cinco escolas próprias e mais de 550 usando seu sistema de ensino, não há data prevista para o retorno das aulas presenciais, mas a infraestrutura já está sendo montada para medir a temperatura dos alunos e disponibilizar álcool em gel.
“O ensino remoto continuará até desaparecer a pandemia”, diz Rommel Domingos, copresidente do grupo. Há um consenso no setor de que será impossível receber todos os alunos ao mesmo tempo quando o isolamento chegar ao fim. Para seguir a recomendação de distanciamento, as escolas precisarão revezar os alunos que assistirão à aula em sala. Enquanto parte da turma estará com o professor, outra ficará em casa, acompanhando o conteúdo pelas plataformas digitais. Todos esses gastos que vão pesar nas finanças do setor, incluindo o da higienização dos espaços, devem ser percebidos com mais força na transição para 2021, quando se inicia o próximo ano letivo — período tradicionalmente escolhido pelas escolas para anunciar aquisições e fechamentos de operação.
Fonte: ABMES
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