A autorização dos cursos de medicina

Por José Roberto Covac e João Paulo de Campos Echeverria*: A Constituição Federal de 1988, entre seus méritos, incluiu o art. 209, que efetivamente inseriu a iniciativa privada para oferta do ensino. O ensino é livre à iniciativa privada, atendidas as seguintes condições: I – cumprimento das normas da educação nacional; II – autorização e avaliação de qualidade pelo Poder Público.

A Lei do Mais Médicos não exclui, e não pode excluir, a possibilidade de a instituição fazer pedido de autorização de curso de Medicina pelo fluxo normal do Ministério da Educação (MEC), assim como ocorre com todos os demais cursos de nível superior, observando o que estabelece o art. 209 da Constituição Federal, LDB e SINAES.

A Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabeleceu as diretrizes e bases da educação nacional, também conhecida como LDB, ou Lei Darcy Ribeiro, determinou que a autorização e o reconhecimento de cursos, bem como o credenciamento e renovação de recredenciamento de instituições de educação superior pelo Poder Público, terão prazos limitados, sendo renovados, periodicamente, após processo regular de avaliação, nos termos do art. 46. E não previu quaisquer outros óbices à oferta dos cursos de graduação, dentre eles o de Medicina.

Os cursos de Medicina, autorizados pelo Mais Médicos ou não, para fins do reconhecimento e renovação de reconhecimento, se submetem, assim como todos os demais cursos, à avaliação in loco, devendo ter conceitos com qualidade nas três dimensões, como definido pelo Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior.

O ponto crucial da verificação da qualidade do curso é por ocasião de seu reconhecimento. Diante da avaliação satisfatória de qualidade, possibilita que o aluno receba o diploma e tenha acesso ao exercício profissional.

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Nesse contexto, compreende-se que as regras de autorização foram estatuídas de forma clara na LDB, segundo a qual toda autorização está vinculada à respectiva avaliação, ou seja, o ato regulatório de autorizar a abertura de uma instituição de ensino superior e seus cursos está vinculado estritamente à avaliação dos critérios educacionais da referida instituição.

A Lei n.º 10.861, de 14 de abril de 2004, que instituiu o Sistema Nacional de Avaliação da Educação Superior (SINAES), estabelece que toda avaliação passa a servir de referencial básico para a regulação e a supervisão. Com isso, conforme já referendado, o resultado das avaliações de instituições e cursos torna-se o referencial para o padrão decisório do Ministério da Educação (MEC) nos atos regulatórios – como a autorização de um novo curso ou nos procedimentos de supervisão – por exemplo, suspensão de novos ingressantes em determinado curso.

Pela legislação atual, todo curso necessita passar pelo processo de autorização com a respectiva análise da comprovação da documentação necessária para a instrução do processo. Sendo que, no que se refere à parte documental da mantenedora, assim como o cumprimento das diretrizes oferecidas pelo SINAES, o INEP verifica a condição de qualidade nas três dimensões, conforme instrumento de avaliação que vem sendo revisto e atualizado, e ainda verifica todas as condições previstas na legislação educacional, inclusive eventual impugnação do relatório em caso de conceito insuficiente ou erro no relatório de avaliação e cumprimento das Diretrizes Curriculares do Curso.

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No ano passado, a ANUP ingressou com Ação Direta de Constitucionalidade em relação a Lei nº 12.871/2013, especialmente com o objetivo de que processos de autorização dos cursos se deem somente por intermédio do Programa Mais Médicos, visando que seja determinada a suspensão de todos os processos, tanto os judiciais quanto os administrativos, iniciados após a edição da Lei nº 12.871/2013, e que tenham por objeto a abertura de curso e/ou o aumento da disponibilização de novas vagas de Medicina, suspendendo-se, ainda, os efeitos de todas as decisões judiciais, liminares ou de mérito, e administrativas, inclusive atos e portarias já editados em inobservância à norma, que tenham permitido o trâmite de pedidos administrativos perante o MEC, relativos aos cursos de Medicina.

O contexto da ADIN fez com que o ministro relator no Supremo Tribunal Federal (STF), Gilmar Mendes, convocasse uma audiência pública em que foi possível ouvir diversas partes envolvidas – ou simplesmente atingidas pela norma impugnada em sede de controle concentrado. Fato que, entre diversas autoridades, provocou a manifestação do Dr. Flávio Camacho, presidente da Sociedade Brasileira de Epidemiologia do Brasil, no sentido de que o Brasil precisa de uma quantidade maior de médicos, registrando que a pandemia de Covid-19 foi um exemplo dessa carência de profissionais médicos no Brasil. Mas, segundo ele, países com mais médicos por 1.000 habitantes tiveram uma taxa de mortalidade menor: “isso  é o que a gente queria trazer para reflexão. Como se prepara o país para uma pandemia? Equipamento não adianta. Você precisa de médicos. Qualquer epidemia que vir para o país, o médico fará a diferença. Morre-se por falta de atendimento.”

A atual legislação já prevê restrições à autonomia institucional no tocante a cinco cursos regulares de graduação: direito, medicina, enfermagem, psicologia e odontologia. Em todos os demais casos, as instituições com autonomia podem, a seu critério, autorizar quaisquer cursos de graduação. A autorização de curso, portanto, é atividade administrativa vinculada, não havendo espaço para a administração pública exercitar qualquer agir discricionário, inclusive em relação ao curso de graduação de medicina.

Pela sistemática da Lei do Mais Médicos, a autorização de curso de medicina depende, além de todo o extraordinário conjunto de exigências, da seleção de município em que se poderá ofertar o curso. Assim, a instituição de ensino superior (IES) deverá participar de um chamamento público por parte do MEC e se candidatar num processo nos moldes da Lei de Licitação Pública, o que é uma limitação evidente diante das necessidades que o Brasil tem na formação de profissionais médicos.

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E não há fundamento para esse tipo de segregação do curso de medicina, ou uma razão para que apenas o curso de medicina contemple essa gama de exigências, quando qualquer outro curso não tem. Veja, na hipótese de ser sancionada uma lei em que todos os cursos, para serem autorizados, deverão passar pelo processo de seleção pública, com adoção da Lei de Licitação e somente poderá ser oferecido nos municípios pré-selecionados, seria essa lei Inconstitucional? Essa é uma reflexão necessária, pois o Brasil precisa de regras que sejam no mínimo fundamentadas e, mais, que impeçam o retrocesso do desenvolvimento humano no País, como parece ser o caso da lei em questão.

Não precisa muito, portanto, para se concluir que, sob tal perspectiva, a lei é inconstitucional, pois estaria a hipotética lei ferindo, além do princípio de vedação ao retrocesso, o art. 209 da Constituição Federal, mormente restringir e impedir a livre iniciativa ao acesso da oferta do ensino, da mesma forma não pode restringir e impedir ainda que seja um único curso, no caso, o curso de medicina, com autorização somente pelo programa Mais Médicos.

A judicialização existente em relação a abertura de cursos de medicina demonstra que o Mais Médicos serviu para fomentar abertura de curso onde não existia interesse, mas não para  inibir abertura de novos cursos de medicina, mediante processo regular de avaliação, sendo que somente o Ministério da Educação pode autorizar o curso, não havendo possibilidade do Poder Judiciário substituir a competência do MEC. Ao judiciário cabe tão somente determinar a abertura do sistema e-MEC para o curso se submeter ao processo de autorização e avaliação como previstos na LDB e Lei do SINAES. Caso o curso não cumpra a legislação educacional e nem seja avaliado satisfatoriamente, não pode ser autorizado.

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Mais recentemente, o MEC editou a Portaria nº 1.061, de 31 de dezembro de 2022, que dispõe sobre o fluxo, os procedimentos e o padrão decisório dos atos de autorização, reconhecimento e renovação de reconhecimento de cursos superiores de medicina, bem como seus aditamentos, das instituições de educação superior do sistema federal de ensino.

A portaria estabelece, já no art. 1ª, as regras aplicáveis a todos os atos de autorização, reconhecimento ou renovação de reconhecimento de cursos de medicina requeridos por IES perante a Secretaria de Regulação e Supervisão da Educação Superior (Seres) do MEC.

O § 1º do dispositivo indicado, além disso, estabelece que a autorização para o funcionamento de curso de graduação em Medicina, por instituição de educação superior privada, será precedida de chamamento público, e as instituições vencedoras deverão protocolar seus pedidos junto à Seres, exclusivamente em meio eletrônico, no Sistema e-MEC.

Nada obstante, a Portaria MEC nª 1, de 2023, revogou a Portaria 1061, de 2022, e assim espera-se que sejam regularizados os pedidos de autorização de curso de medicina dentro do processo normal de autorização, como previsto na LDB e Lei do SINAES, cabendo ao Ministério da Educação fomentar abertura de cursos de medicina em locais em que a iniciativa privada não requereu pelo Programa Mais Médicos.

*José Roberto Covac e João Paulo de Campos Echeverria são sócios da Covac Sociedade de Advogados 

FONTE: revistaensinosuperior