ENAMED: Uma Nova Referência para a Formação Médica no Brasil

Max Damas
Assessor da Presidência do SEMERJ
Assessor da Presidência da ABMES e FOA
Escritor e consultor educacional

A criação do Exame Nacional de Avaliação da Formação Médica (ENAMED) representa mais que uma mudança na forma como os cursos de Medicina são avaliados no Brasil — trata-se da inauguração de uma nova cultura de responsabilização e aprimoramento da educação médica, com base em evidências, ciclos regulares de avaliação e forte articulação com as políticas públicas de saúde.

Ao vincular o desempenho acadêmico à seleção para residência médica, o ENAMED posiciona-se como uma ferramenta estratégica de indução à qualidade. Ele alinha os interesses dos estudantes, das instituições e do Estado, colocando todos em torno de um mesmo eixo: garantir uma formação médica compatível com as complexidades da realidade brasileira.

Conceito e Finalidade do ENAMED

Construído com base nas Diretrizes Curriculares Nacionais (DCNs), o ENAMED avalia, por meio de 100 questões de múltipla escolha, as competências desenvolvidas ao longo de seis anos de formação médica. As áreas abordadas — Clínica Médica, Cirurgia Geral, Ginecologia e Obstetrícia, Pediatria, Medicina de Família e Comunidade e Saúde Coletiva — foram escolhidas por refletirem o núcleo essencial da atuação médica generalista, como previsto nas DCNs.

Diferentemente do Enade tradicional, o ENAMED deixa de ser uma fotografia pontual para se tornar um termômetro anual da formação médica no país, oferecendo parâmetros confiáveis para que cada curso possa comparar-se consigo mesmo ao longo do tempo, com outras instituições e com a média nacional.

Esse movimento ecoa a visão defendida por Richard Stiggins, na obra From Formative Assessment to Assessment FOR Learning (2005), ao propor que a avaliação deve ser pensada “não como algo que encerra o processo educativo, mas como parte integrante da aprendizagem e da gestão escolar”. Avaliar, nesse caso, não significa punir: significa compreender para transformar.

Avaliação como Aliada da Gestão Acadêmica

Um dos grandes méritos do ENAMED está no seu potencial para alimentar a gestão pedagógica com informações valiosas. Ao acompanhar os resultados por área de conhecimento, por coorte de estudantes e por instituição, os coordenadores de curso e os núcleos docentes estruturantes passam a ter acesso a dados robustos para fundamentar revisões curriculares, reestruturar disciplinas, reformular estágios e planejar formação docente.

Ilustra-se isso com um exemplo realista: imagine uma instituição que, ao longo de três anos, observa que o desempenho dos estudantes em Cirurgia Geral permanece abaixo da média nacional. Ao cruzar esses dados com informações internas, percebe-se que o número de docentes cirurgiões é limitado, que os campos de prática estão concentrados em procedimentos eletivos e que os estudantes têm pouca autonomia clínica supervisionada. A partir dessa análise, podem ser estabelecidas metas concretas, como a ampliação da carga horária de práticas, a parceria com hospitais de ensino e a reestruturação dos objetivos de aprendizagem da disciplina.

Essa forma de conduzir a avaliação está em linha com o modelo CIPP, desenvolvido por Daniel L. Stufflebeam, e apresentado na obra The CIPP Evaluation Model: How to Evaluate for Improvement and Accountability (2003). O autor defende que uma avaliação eficaz deve contemplar quatro dimensões — Contexto, Insumos, Processos e Produtos — permitindo um ciclo de feedback contínuo para a tomada de decisão.

Estímulo à Cultura de Qualidade e Inovação

O ENAMED também impulsiona uma mudança cultural nas instituições: ao trazer resultados confiáveis e comparáveis, torna-se possível sair do improviso e entrar na gestão pedagógica por evidências.

Suponha o seguinte cenário: um curso decide adotar metodologias ativas no módulo de Ginecologia e Obstetrícia. As mudanças envolvem a substituição de parte das aulas expositivas por discussão de casos clínicos reais, participação ativa nos atendimentos ambulatoriais e elaboração de planos terapêuticos supervisionados. Dois anos depois, os resultados do ENAMED revelam uma melhora expressiva nessa área — acima da média nacional. Esse dado, mais do que um reconhecimento, torna-se um insumo de planejamento institucional. A decisão de manter e expandir essa abordagem passa a ser sustentada em resultados concretos, e não apenas em impressões subjetivas.

Essa perspectiva está alinhada à abordagem de Michael Barber e Michael Fullan, apresentada no livro Liberating Learning: Technology, Politics, and the Future of American Education (2009), quando os autores afirmam que “a qualidade da educação depende tanto da inovação quanto da capacidade de implementar, medir e sustentar essa inovação”.

Segurança para os Mantenedores e Inspiração para os Gestores

Ao contrário do que possa parecer à primeira vista, o ENAMED não deve ser motivo de receio para os mantenedores. Pelo contrário: ele oferece uma oportunidade rara de reforçar o compromisso com a excelência acadêmica e com a transparência institucional.

Em vez de esperar por sinais externos de qualidade, a própria instituição passa a dispor de indicadores regulares, comparáveis e socialmente reconhecidos que podem ser utilizados em processos de acreditação, planos de desenvolvimento institucional, prestação de contas à sociedade e posicionamento no ecossistema educacional.

Como propõe Peter Senge, em sua obra A Quinta Disciplina (2005), instituições de aprendizagem são aquelas que “transformam seus dados em sabedoria organizacional”. O ENAMED pode se tornar esse canal de escuta sistêmica que faltava para orientar a governança acadêmica com mais segurança.

Para Onde Devemos Olhar

A implementação do ENAMED representa o início de um novo ciclo. Mas, para que ele seja bem-sucedido, é preciso mais do que aplicação técnica: é necessário um alinhamento ético e institucional com o propósito da avaliação. Não se trata apenas de obter boas notas, mas de formar bons médicos.

E para formar bons médicos, é preciso garantir que o currículo, a prática e a avaliação dialoguem entre si. Como enfatiza Michael Fullan, em O Significado da Mudança Educacional (2009), “não há mudança verdadeira sem compreensão da cultura onde se pretende mudar”. O ENAMED poderá ser transformador se for compreendido como um instrumento de escuta institucional, e não de fiscalização.

Perspectivas Futuras: Avaliar Também a Prática

Por fim, uma etapa necessária e promissora será o avanço para a avaliação das competências práticas, aquelas que verdadeiramente qualificam o estudante como profissional capaz de atuar com segurança, responsabilidade e humanidade.

A habilidade de conduzir uma consulta clínica, de examinar corretamente um paciente, de interpretar exames, de comunicar más notícias com empatia — tudo isso precisa ser avaliado com métodos próprios, distintos das provas escritas.

Modelos como a OSCE (Objective Structured Clinical Examination), já amplamente utilizados em países como Reino Unido, Canadá e Austrália, têm demonstrado alto potencial de confiabilidade e validade. Essa abordagem foi amplamente estudada por Harden e Gleeson, na obra Assessment of Clinical Competence Using an Objective Structured Clinical Examination (OSCE) (1979), cuja conclusão foi clara: “a avaliação prática estruturada representa uma das formas mais justas e rigorosas de testar habilidades clínicas”.

A incorporação futura desse tipo de exame como parte do ENAMED representará um avanço não apenas técnico, mas ético: a garantia de que o estudante é avaliado não apenas por aquilo que sabe, mas pelo que é capaz de fazer.

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