Thiago Machado, de 22 anos, perdeu o emprego quando a pandemia começou a atingir o mercado de trabalho no país. Sem saber por quanto tempo ficaria sem renda, trancou a matrícula no curso de gestão financeira em uma universidade privada na capital paulista. “Mais difícil do que começar a faculdade é terminar, todo mundo fala isso”, afirma. “Precisei trancar.”
Ana Luiza Marques Santos, de 24 anos, suspendeu a matrícula na faculdade de história no ano passado. Parou por questões financeiras. Tinha o plano de voltar a estudar em 2020 em uma universidade privada.
Guardou dinheiro e se preparou. Mas, em março, com o início da pandemia no Brasil, as aulas foram suspensas. Três meses depois, ela perdeu o emprego. “Sempre acreditei que, me formando em história, poderia ajudar outras pessoas como eu, mas nem estou conseguindo me formar.”
O cenário de incertezas na economia após a pandemia, com salários reduzidos e perda de emprego, pode contribuir para a queda de matrículas, abandono e aumento da evasão no ensino superior do país.
Na rede privada, onde estão quase 80% dos universitários, o impacto econômico é sentido diretamente nas mensalidades. Na rede pública, o baque ainda deverá ser capturado. Mas, a estimativa é que, sim, haverá maior evasão no período de pandemia.
“Podemos dizer que 50% dos alunos das universidades federais são pessoas em vulnerabilidade social. E sabemos que, na sociedade como um todo, as famílias têm sido muito impactadas”, afirma Isabel Hartmann, pró-reitora de graduação da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) e integrante da Andifes, a associação de reitores das universidades federais do país.
Alesandro de Brito Filho, de 23 anos, é um destes casos. Estudante de medicina da Universidade Estadual de Pernambuco (UPE), ele conta que a renda familiar foi impactada com a pandemia. Os custos aumentaram com a conta de luz e a alimentação, agora que passa o tempo todo em casa.
Antes, Alesandro ficava o dia todo na universidade e comia em restaurantes populares, que estão fechados.
“Desistir sempre passa pela cabeça quando não se tem todos os materiais necessários para se manter estudando e no mesmo ritmo dos companheiros de classe. Agora eu tendo a me desdobrar”, afirma.
A universidade de Alesandro vai retomar as aulas, de modo remoto, neste semestre. Ele está sem computador ou tablet, já que o dele quebrou em abril. O smartphone é o único meio de manter comunicação com a universidade.
Com uma bolsa de R$ 400 que ele obteve recentemente no Instituto Luiza Mahin (Iluma), associação que reúne médicas, médicos e estudantes negros no Brasil, Alesandro pretende comprar algum equipamento para acompanhar as aulas.
Evasão e mão de obra
As áreas que têm maior evasão e mantiveram a tendência na pandemia são, segundo o sindicato das entidades de ensino superior privado do Estado de São Paulo (Semesp):
- Sociais aplicadas (administração, publicidade e propaganda e contabilidade),
- Engenharias (civil, mecânica e produção)
- Técnico em informática (TI)
Cursos de administração e contabilidade costumam atrair pessoas de renda menor, faixa da população que foi mais afetada pela pandemia, explica o economista Rodrigo Capelato, diretor-executivo do Semesp.
Já as engenharias atraem um grande número de estudantes porque têm um mercado de trabalho atrativo, mas são cursos caros e os alunos encontram dificuldade de manter o pagamento em dia.
A área de TI (tecnologia da informação) atrai os profissionais que possuem certificações intermediárias – e os alunos acabam abandonando a faculdade para dar prioridade ao trabalho.
Entre 2017 e 2018, o índice de alunos que desistiram ou abandonaram a faculdade aumentou pouco mais de um ponto percentual: foi de 27,5% para 28,8%.
Os dados de 2019 e 2020 ainda não foram divulgados, mas estima-se que deste ano seja de 35%, afirma Capelato. Esse índice representa 461 mil alunos que poderão desistir de estudar nas faculdades particulares do país por causa da pandemia, estima.
A consequência será um “apagão” da mão de obra qualificada nos próximos anos – justamente quando o país precisará se reerguer dos efeitos da suspensão das atividades econômicas após a recessão provocada pelo coronavírus.
Por outro lado, a redução no número de novas vagas devido à recessão econômica poderá aumentar o “mismatching”, expressão usada para falar sobre a incompatibilidade entre a formação acadêmica do candidato e a exigência da vaga, afirma Daniel Duque, pesquisador da área de Economia Aplicada do FGV IBRE.
“As vagas que exigem ensino médio completo poderão ser preenchidas por profissionais com diploma do ensino superior, simplesmente porque há oferta”.
Mercado de trabalho: futuro
Lucas Oggiam, da PageGroup, uma multinacional de recrutamento, diz que “a falta de mão de obra especializada no mercado brasileiro já é uma realidade”.
“O impacto da pandemia virá daqui a 5, 10, 15 anos. O Brasil padece de mão de obra qualificada há tempos, mas ter um agravamento da mão de obra formada é bastante desafiador”, analisa.
Segundo Oggiam, poderá ocorrer uma forte disputa das empresas por trabalhadores qualificados – o que vai inflacionar os salários em áreas como de tecnologia.
“Profissionais que falam um segundo idioma seguem sendo menos de 5% no Brasil. Se isso se agravar nos próximos anos, a capacidade das empresas de terem grande performance, e de se globalizarem, segue sendo desafiadora”, afirma.
Alerta
O sinal vermelho nas universidades privadas acende quando as mensalidades ficam atrasadas. No primeiro semestre de 2020, a taxa de inadimplência aumentou 51%, se comparado ao mesmo período do ano anterior. A evasão cresceu 14%.
O número de novos alunos no segundo semestre de 2020 também sofreu redução, de 50%, segundo o sindicato das mantenedoras do ensino superior. O motivo? Desemprego e perda de poder aquisitivo dos alunos ou familiares.
Uma pesquisa feita pela Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (ABMES) divulgada em junho aponta que, entre os alunos entrevistados, 42% afirmaram que há risco de desistir do curso.
O adiamento do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem), de novembro para janeiro de 2021 e com divulgação dos resultados no fim de março, deverá provocar um efeito cascata no setor.
De acordo com a ABMES, o adiamento poderá tirar ao menos 3,5 milhões de estudantes do ensino superior privado.
Crise, descontos e bolsas
O cenário de crise tem levado algumas universidades privadas a lotar as salas virtuais, ou a demitir professores. Ana Luiza Marques Santos, por exemplo, diz que tentou negociar a mensalidade com a faculdade para poder voltar a estudar, mas não foi atendida.
Thiago Machado teve sorte: conseguiu um emprego há duas semanas e voltou a estudar em uma faculdade de São Paulo, onde já tinha bolsa de 70% de desconto na mensalidade, pela Quero Bolsa.
No entanto, ele conta que a evasão foi tanta que a universidade juntou a turma dele, de gestão financeira, com outra, de contábeis.
Por enquanto, diz Thiago, dá para acompanhar as aulas. “Assim que concluir este curso, espero ter um emprego melhor”. No Brasil, um diploma universitário na mão pode garantir um salário até 258% maior se comparado a quem não concluiu o ensino médio, segundo a OCDE.
Fonte: ABMES
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