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O dilema dos cursos de medicina no STF: o que ainda deve ser ressaltado

O STF (Supremo Tribunal Federal) parece pronto para decidir a tormentosa questão dos cursos de medicina. Tema central em um país carente de médicos e de serviços de saúde. O julgamento, que ainda não será definitivo, deve ocorrer na ADC 81-DF e na ADI 7187-DF. Há vários pontos que suscitam intenso debate.

Reportamo-nos, primeiramente, a decisões relevantes sobre a matéria, especialmente em âmbito do TCU e do próprio STF. A partir delas, inclusive, pode-se observar que a proposta de chamamentos públicos tem natureza temporária. São os próprios termos históricos da Seres/MEC, ao contrário do que consta no discurso atual, o qual sempre se refere ao regime comum de regulação como hipótese já superada.

Há, também, outra aguda contradição entre a argumentação central deduzida pelo ministério regulador e a nova política governamental, fixada na Portaria 650/2023. Por fim, e não menos importante, há distinção que se colhe na manifestação da consultoria do Senado, fixada entre o escopo e a extensão do tema debatido e a pretensão deduzida em juízo pela União.

Dois precedentes do STF e um parecer da área técnica do TCU são centrais para o desate da discussão. Em 2005, o STF decidiu sobre a inexigibilidade de processo de concessão para atividades de ensino. Em 2008, modulou decisão relativa à autorização e credenciamento de cursos superiores com vistas ao funcionamento de instituições e cursos, inclusive de medicina.

A primeira decisão é persuasiva. Demonstra que o chamamento público, que na verdade é uma espécie de licitação (Art. 3º, § 3º, da Lei 12.871/2013), não poderia ser imposto como única condição para abertura de curso regulado. Nos termos do decidido na ADI 1007 os serviços de educação, que são serviços públicos não privativos, podem ser desenvolvidos pelo setor privado, independentemente de concessão e, acrescentamos, por óbvio, de licitação.

Editais publicados por iniciativa do Poder Público marcam inequívoco esforço de tornar concessão pública o que deveria ser livre iniciativa. Por isso, antagonizam e hostilizam a noção de serviços não privativos, tal como fixado no precedente da Suprema Corte.

Em outra decisão, também sobre serviços de educação, o STF pronunciou a ilegalidade de centenas de autorizações de cursos superiores e até de credenciamentos de instituições de ensino, registrando, no entanto, “(..) a modulação dos efeitos da decisão (art. 27 da lei 9.868/1999), a fim de que sejam considerados válidos os atos (diplomas, certificados, certidões etc.) praticados pelas instituições superiores de ensino atingidas por essa decisão.” (vide ADI 2.051).

O caso é uma referência. O MEC atuou para criar o Edital 01/2012, viabilizando a migração das instituições e seus cursos do sistema estadual para o sistema federal. Todo o procedimento é exemplo de boas práticas para autorizações e credenciamentos.

O aproveitamento das avaliações e a manutenção dos cursos e instituições em funcionamento foi opção muito bem-sucedida. A par de prática elogiadíssima, é fator de segurança jurídica e institucional, bem como de respeito aos investimentos na área de saúde, que sempre devem ser respeitados. Transita-se no campo da segurança jurídica, que é, no limite, direito e dever de todos. É inclusive compromisso da AGU, como recentemente enfatizou o Ministro de Estado Advogado-Geral da União, doutor Jorge Messias, em recente evento no Conselho Superior de Assuntos Jurídicos da Fiesp.

Lembremo-nos também de parecer da área técnica do TCU e de um voto, em especial, que indicam a ilegalidade dos atos do MEC no caso da aplicação do chamamento público. Em 2015, na TC 022.106/2015-4, a área técnica da Corte de Contas enfatizou em sugestão de encaminhamento que “qualquer interpretação ao artigo 3º da Lei 12.871/2013 que assegure, no caso concreto, exclusividade ao processo de chamamento para obtenção de autorização para o funcionamento de curso de graduação em medicina será considerada inconstitucional por esta Corte”.

No caso, que é um paradigma, o TCU firmou “(…) o entendimento de que o processo de chamamento público, na forma prevista na Lei 12.871/2013, não pode ser a única forma possível de obtenção de autorização para o funcionamento de curso de graduação em medicina, ante a afronta aos fundamentos constitucionais da livre iniciativa e da livre concorrência, consagrados nos artigos 1º, IV, 170, caput e IV, e 209 da Constituição de 1988”. Trata-se do postulado central que fundamenta as ações que tem por objetivo a abertura de protocolos de novos cursos de medicina.

No mesmo julgado colhe-se manifestação do órgão de controle, cujo desacordo presente sugere a ocorrência da odiosa cláusula venire contra factum proprio; está explícito no Acórdão do TCU, que “a Seres/MEC reforça que a expansão de cursos de medicina é política de caráter temporário, e que a Seres passará a acolher novos pedidos de autorização de curso de medicina em outras localidades após o atendimento da meta, incorporando ainda os referenciais de qualidade previstos no artigo 3º, § 7º, da Lei 12.871/2013, que são essenciais para o aprimoramento do ensino da medicina no Brasil”.

Todavia, há evidente contradição entre o fato de se tratar de uma “política temporária”, como afirmado pela própria Seres/MEC e o fato de a mesma ter sido suspensa por um longo prazo — cinco anos — para ser retomada sem grandes mudanças em 2023. Ora, por que algo que é temporário precisaria ser sobrestado? Não bastaria deixar o projeto atingir suas metas e depois avaliá-lo? E se o projeto não atingiu nem se aproximou dos resultados esperados qual seria a justificativa para suspendê-lo sendo ele, declaradamente, temporário? Não seria melhor ou mais lógico extingui-lo em virtude de seu caráter temporário inato?

Demonizar as ações judiciais que afastaram a política de chamamentos, no contexto descrito acima é desarrazoado e desproporcional. Se o programa era temporário e já havia uma suspensão incongruente, bem decidiu o Judiciário ao restaurar o que preconizou a própria Seres/MEC, ou seja, “…acolher novos pedidos de autorização de curso de Medicina em outras localidades”. A suspensão do programa, sem as decisões judiciais, resultaria no absoluto impedimento de que a União alcançasse metas previamente traçadas. A União não deveria voltar-se contra si mesma, por isso não pode tratar como um problema decisões que mantiveram, na prática, seus objetivos.

O argumento de que o principal motivo para a defesa dos chamamentos públicos contidos no artigo 3º, da Lei do PMM seria a necessidade de promover uma redistribuição dos médicos, atacando, principalmente, o problema da desigualdade na área de atendimento à saúde é contraditório e falacioso. Para além do que já poderia ser contado no mundo dos fatos, a Portaria 650/2023 fragiliza esse postulado ao qualificar, com o mesmo status de “chamamento público”, uma modalidade de seleção na qual são elegíveis os hospitais de ensino com qualidade nos campos de prática, independentemente da existência de necessidade social na localidade.

Diante disso, a afirmação de que “o escopo do chamamento público consiste em que os editais supram os locais com maior carência de médicos” (incluída no pedido cautelar) é claramente incongruente. Bem entendido, não é esse, de fato, o objetivo do chamamento. Na prática, esta modalidade licitatória foi criada como instrumento de intervenção estatal de uso mais amplo. Do ponto de vista retórico o argumento foi maquiado como uma nobre causa redistributiva.

A existência de mais uma modalidade de chamamento público, tal como contida na Portaria 650/2023 e embasada na própria Lei 12.871/2013, revela que o problema da desigualdade é apenas um discurso genérico para justificar intervenção exagerada do Estado.

Não bastasse a fragilidade dos argumentos centrais do pedido contrário às ações sobre os cursos de medicina, o próprio Senado manifestou-se (na ADC 81) que a ação não pode ser “(…) conhecida para suspender eventuais decisões judiciais que não tenham por objeto específico a inconstitucionalidade do artigo 3º, mas a eventual ilegalidade da atuação concreta do Ministério da Educação, por ser questão que desborda do conhecimento da presente ADC”.

Atentemos para a advertência. Afinal, nem todas as ações sobre protocolos de curso de medicina tem como fundamento a inconstitucionalidade do artigo 3º, da Lei 12.871/2013. Exemplifica-se com ações envolvendo processos anteriores a 2012, e que que ficaram retidos por demora do MEC, ou que foram indeferidos sem motivação. Essas ações não podem e não devem ser suspensas por decisão do STF, pois não se referem a constitucionalidade ou inconstitucionalidade de normas. Afetá-las é indício de anomalia jurídica que revelaria uma patologia institucional.

Há também processos nos quais já há portaria de autorização, e que não deveriam ser suspensos. O fundamento já é fato consolidado. Esta teoria é amplamente aceita na área educacional, tanto para estudantes quanto para instituições e cursos que, independentemente do processo judicial, passam por processos de avaliação e que demonstram mérito e qualidade. Uma vez que há gastos superlativos de recursos públicos e privados, demonstrada a qualidade e concluído o processo com aval do próprio MEC, nenhuma justificativa há para suspender o processo judicial agora.

Diante desse quadro pode ser traçada uma expetativa para o julgamento que está prestes a ocorrer. Decisões recentes do tribunal e mesmo do ministro relator têm indicado uma postura a favor da livre iniciativa, regulada e monitorada, mas livre de grandes intervenções do Poder Judiciário. Nesse sentido, preserva-se o núcleo essencial da livre iniciativa mesmo em casos no qual a regulação estatal é flagrantemente necessária.

O chamamento é espécie de licitação, não representa tudo o que é o Mais Médicos, um programa infinitamente maior, e nem serve apenas à redução de desigualdades. Esta ferramenta não pode e não deve ser contraposta à livre iniciativa, de cunho constitucional. Portanto, seria lógico que fossem mantidas as ações judiciais que relegam o chamamento à condição de via complementar para abertura de cursos de medicina.

Os analistas estão concluindo que o que temos, de fato, é um programa originalmente bem concebido, marcado por propósitos claros e objetivos de políticas públicas de saúde. No entanto, sob fortíssima pressão de grupos interessados na manutenção de condições originárias o órgão regulador pode ter renunciado à missão de efetivamente regular, suscitando uma barafunda burocrática que tem como resultado o prejuízo da plena busca de um direito fundamental.

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