O mês de julho, tradicionalmente de férias escolares, chegou com muitas dúvidas sobre a possibilidade de retorno às aulas presenciais em meio ao agravamento da questão sanitária do coronavírus. Em todo o país, foram formados grupos e comitês com a missão de definir um plano de volta à escola com segurança para os estudantes.
Levantamento da Federação Nacional das Escolas Particulares (FENEP) mostra que, até a última sexta-feira (3/7), 16 estados brasileiros seguem sem previsão de retorno e 11 têm uma proposta de data — quatro deles pretendem retomar as aulas presenciais ainda em julho, a partir da semana que vem ou no final do mês. Seis estados planejam voltar a partir de agosto ou setembro. Nenhum estado ou capital tem, no entanto, escola aberta no momento.
Com a incerteza quanto ao retorno das aulas, acirrou-se a disputa que envolve a obrigação – ou não – de descontos no pagamento das mensalidades em estabelecimentos privados do ensino fundamental, médio e até superior.
Há três meses o tema tem movimentado ações nas três esferas de Poder nos estados e capitais, com edição de decretos pelo Executivo, aprovação de propostas no Legislativo e decisões na Justiça que obrigam a redução de forma generalizada.
A começar pelo Legislativo, a Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior (ABMES) monitora atualmente 49 projetos de lei em tramitação nas Assembleias Legislativas, três no Senado e 31 na Câmara dos Deputados.
Levantamento do JOTA encontrou ao menos oito estados que já sancionaram leis que obrigam a redução com diferentes percentuais para diferentes níveis do ensino.
No caso do Distrito Federal, projeto de lei chegou a ser aprovado, mas não foi sancionado pelo governo. Em outros estados, a Justiça impediu a execução dos descontos sancionados pelo Executivo, como no Rio de Janeiro, onde ainda houve nova decisão derrubando a liminar que suspendia os descontos.
Acordos
Na maioria dos estados, houve recomendação pelo Ministério Público, Defensorias e Procons e outros órgãos de defesa do consumidor para a definição de um acordo entre as escolas, universidades e alunos. É o caso de Santa Catarina, onde o Ministério Público estadual ajuizou ação no Tribunal de Justiça, que determinou de forma liminar a redução de 15% das mensalidades no ensino infantil. Na capital Florianópolis, porém, o MP ainda viabiliza acordos com as escolas.
Ao menos sete unidades federativas não aprovaram leis, mas tiveram decisões dos Tribunais de Justiça locais em favor do desconto. É o caso de Alagoas, Amapá, Amazonas, Bahia, Minas Gerais, Pernambuco e Santa Catarina.
O advogado e especialista em Direito Constitucional, Anderson Araújo, também encontrou ações judiciais no Ceará, no Distrito Federal, no Maranhão, em Mato Grosso, na Paraíba, Rio de Janeiro e São Paulo.
Reação
As iniciativas provocaram reação de várias entidades de ensino privado. Segundo a ABMES, não é possível mensurar com precisão o número de ações judiciais coletivas e individuais em todo o país. A entidade critica a imposição de uma redução linear, porque pode favorecer alunos que não foram afetados pela pandemia da Covid-19 e impedir a concessão de um desconto maior de 30% aos alunos que realmente estão em necessidade.
“A Associação Brasileira de Mantenedores de Ensino Superior (ABMES) é contrária ao desconto linear de 30% nas mensalidades das instituições de ensino superior (IES). A entidade acredita que a prática aplicada historicamente de negociar individualmente com cada aluno, conforme as necessidades individuais, é mais efetiva e mais sustentável para manutenção do estudante em sua formação superior e para saúde financeira das instituições”, disse em nota.
A ABMES defende a adoção de medidas de apoio financeiro aos estudantes, como a criação do FIES Emergencial – há um projeto com a proposta em tramitação no Senado . A associação também pede acesso das instituições a linhas de crédito do BNDES para que tenham capital de giro e possam manter os empregos de professores e demais funcionários.
Na semana passada, o Conselho de Reitores das Universidades Brasileiras (CRUB) ajuizou no Supremo Tribunal Federal (STF) arguição de descumprimento de preceito fundamental para suspender todos os processos judiciais que “tratam da imposição de descontos compulsórios de mensalidades ou de suspensão dos pagamentos dos serviços educacionais”.
Inclusive “os efeitos das ordens liminares já concedidas, impedindo novas decisões judiciais sobre a matéria até o julgamento definitivo desta ADPF”.
A Confederação Nacional dos Estabelecimentos de Ensino (Confenen) também já ajuizou três ações diretas de inconstitucionalidade contra leis estaduais que obrigam a redução de mensalidade nas instituições privadas de ensino. As ações ainda não foram julgadas pelo Supremo. Os relatores são os ministros Edson Fachin e Alexandre de Moraes.
Jurisprudência e segurança jurídica
O especialista Anderson Araújo explica que, em relação à legislação, compete privativamente à União legislar sobre Direito Civil; e concorrentemente à União, estados e municípios legislar sobre direito do consumidor, educação e ensino.
Sobre a jurisprudência, Araújo cita que o STF já julgou como procedente a Ação Direta de Inconstitucionalidade (ADI) 1.007 contra lei do estado de Pernambuco de 2005 que fixava o último dia do mês em que ocorrer a prestação dos serviços educacionais como prazo para pagamento das mensalidades escolares.
Em 2009, no julgamento da ADI 1.042, o STF também julgou inconstitucional uma lei do Distrito Federal que permitia descontos escolares para famílias que tivessem mais de um filho matriculado no mesmo estabelecimento de ensino.
Contudo, em outras decisões mais recentes, que tratavam não especificamente de mensalidades, mas de assuntos correlatos, como taxas de matrículas ou de outros serviços escolares, o STF sinalizou que o tema pode ser considerado como de competência concorrente.
Para o analista, mesmo que o Supremo mude seu entendimento e decida que a competência é concorrente sobre a redução das mensalidades durante a pandemia, os estados e municípios devem seguir legislação federal que já existe sobre o assunto, no caso a Lei 9.870, de 1999. A lei trata dos valores das anuidades escolares, mas não estabelece a obrigação de concessão de um percentual de desconto.
“Caberia à Lei 9870/99 exercer o papel de norma geral, como um parâmetro [para os estados]. E o papel do estado nesse caso é suplementar aquilo que a União já convencionou como norma geral. Quando o estado nessa competência suplementar vai além do que foi determinado pela União, a norma estadual é inconstitucional, independente da decisão do Supremo pela competência é privativa ou concorrente”, explica Araújo.
“A solução para dar segurança jurídica e acalmar as partes desta demanda seria uma lei federal aprovada pelo Congresso permitindo que os estados façam o desconto. O ideal é, nesse caso, sempre partir da União”, completou o advogado.
Se a legislação local que obriga o desconto for considerada inconstitucional pelo Supremo, caberá à Corte também decidir se os efeitos da decisão poderão retroagir ou serem modulados, para não permitir que os consumidores o paguem as diferenças descontadas durante a pandemia.
Fonte: ABMES