Enquanto o CEO do Facebook, Mark Zuckenberg, aposta tudo no futuro do Metaverso (a convergência de realidade física, aumentada e virtual em um espaço online compartilhado), em Madrid foi realizada a Conferência Transvision 2021, com os pesos pesados do Vale do Silício da agenda transhumanista mundial. Nos últimos meses estão sendo lançadas de forma mais acelerada as bases intelectuais e tecnomísticas para uma nova ordem social totalmente digitalizada – aquilo que está sendo chamada de Quarta Revolução Industrial, paradigma global de transformação total – adotado pela Microsoft, Alibaba, Sony, General Motors, Mozilla e Salesforce, entre muitos outros. No contexto do “Grande Reset Global” anunciado pelo Fórum Econômico Mundial, o que tudo isso representa? Não precisa ser nenhum escritor distópico como George Orwell ou Aldous Huxley para imaginar as implicações políticas da religião pós-humanista transformada em realidade.
Este humilde blogueiro vem insistindo desde o ano passado que a pandemia Covid-19 foi uma oportuna janela de oportunidades para o Capitalismo: de imediato, a crise sanitária assumiu a função de mitigar um profundo crash financeiro que ocorreria em 2020 e que seria muito maior do que o de 2008 – produziu um circuit braker global, drenou bilionário liquidez do Estado para evitar “risco sistêmico” e uma violenta e rápida concentração de riqueza sem precedentes na História.
As políticas de isolamento social durante a pandemia criaram o efeito de liberação definitiva das potencialidades digitais prometidas por Bill Gates lá atrás em 1995 no seu livro “A Estrada do Futuro”: o trabalho e o ensino à distância, comprar, escolher e relacionar-se com as pessoas através da Internet etc.
Em meio à crise sanitária global, o Fórum Econômico Mundial percebeu o timing e lançou a agenda da reconfiguração do Capitalismo dentro do que definem como “Grande Reset Global”.
Ao lado de eventos nesse ano como a Cyber Polygon (simulação em tempo real de ataque hacker global – clique aqui) e o “Desafios de Inovação” promovido pela OTAN, no Canadá, discutindo Guerra Cognitiva (Big Data + hackeamento dos cidadãos), no final de semana de 16 de outubro realizou-se em Madrid a Conferência Transvision 2021 com os pesos pesados da agenda Transhumanista mundial: Max e Natasha More, José Cordeiro, David Wood, Jerome Glenn, Phillipe van Nedervelde, Ben Goertzel, Aubrey de Gray, Bill Faloon e, mesmo em sua ausência, Ray Kurzweil, importante diretor da empresa Google e fundador da Singularity University.
Nos últimos meses estão sendo lançadas de forma mais acelerada as bases intelectuais para uma nova ordem social totalmente digitalizada – aquilo que está sendo chamada de Quarta Revolução Industrial, um paradigma global de transformação total – adotado pela Microsoft, Alibaba, Sony, General Motors, Mozilla e Salesforce, entre muitos outros.
E convergindo à agenda transhumanista do Grande Reset Global, o CEO do Facebook, Mark Zuckenberg. No podcast do portal de notícias The Verge (Vox Media), Zuckenberg declarou que está apostando todas as suas fichas em tornar o conglomerado de mídia social em uma “empresa metaversa”. O futuro da empresa iria muito além de seu projeto atual de construir um conjunto de aplicativos sociais conectados e algum hardware para apoiá-los. Em vez disso, disse ele, o Facebook se esforçaria para construir um conjunto maximalista e interconectado de experiências direto da ficção científica – um mundo conhecido como metaverso.
O metaverso é um termo criado em “Snow Crash”, romance de ficção científica de Neal Stephenson de 1992. O termo se refere a uma convergência de realidade física, aumentada e virtual em um espaço online compartilhado. Empresas e produtos, incluindo Fortnite da Epic Games, Roblox e até Animal Crossing: New Horizons, cada vez mais incorporam elementos semelhantes ao metaverso – o CEO da Epic Games, Tim Sweeney, vem discutindo seu desejo de contribuir para um metaverso há muitos meses.
Metaverso, ciberespaço, imortalidade
O Metaverso seria o próximo estágio no desenvolvimento da internet.
No momento, as pessoas interagem umas com as outras online acessando sites como plataformas de mídia social ou usando aplicativos de mensagens. A ideia do metaverso é que ele criará novos espaços online nos quais as interações das pessoas possam ser multidimensionais, onde os usuários podem mergulhar no conteúdo digital em vez de simplesmente visualizá-lo.
Imagem: Cinegnose.blogspot.com
O ano de 1984 foi importante para as bases intelectuais do transhumanismo. Enquanto o escritor William Gibson lançava o livro “Neuromancer” (introduzindo os conceitos de inteligência artificial avançada, uma rede em matrix e um cyberespaço imersivo e tátil conectado ao sistema nervoso, criando uma alucinação consensual), o cientista da NASA Robert Jawstron vislumbrava um futuro dominado pela “inteligência descorporificada”:
Um dia um cientista será capaz de retirar o conteúdo da sua mente e transferi-lo para a memória do computador. Porque a mente é a essência do ser, podemos dizer que tal cientista entrou no computador e passou a habitá-lo. No mínimo podemos afirmar que a partir do momento que o cérebro humano habita um computador ele está liberado da fraqueza da carne mortal … Ele está no controle do seu próprio destino. A máquina é seu corpo, ele é a mente da máquina… Esta parece ser para mim a forma mais inteligente e madura de vida no universo. Habitar placas de silício e não mais limitado pela duração da vida no interior do ciclo mortal de um organismo biológico. Tal espécie de ser viverá para sempre.” (Robert Jastrow, The Enchanted Loom: Mind in the Universe, New York, Simon and Schuster, 1984, pp. 166-67).
O Metaverso é o último desdobramento de um estranho zeitgeist que motiva os cientistas e engenheiros computacionais do Vale do Silício: uma combinação de empreendedorismo de startups tecnológicas, transhumanismo, tecnognosticismo e fundamentalismo religioso.
Esse élan místico-religioso por trás da ciência computacional é bem conhecido, como alerta o cientista de computadores e criador do conceito de realidade virtual, Jaron Lanier, de que uma nova religião (a “religião das máquinas” ou “totalitarismo cibernético”) seria uma ideia corrente entre pesquisadores e empreendedores digitais.
A tecnologia transhumanista
O Vale do Silício desenvolve conceitos quase religiosos como o de “singularidade”: a crença de que em um dado momento a curva de evolução ficaria tão vertical que ultrapassaria o limite do próprio gráfico – as máquinas ficariam tão inteligentes pelo acúmulo de dados que superariam as capacidades humanas, levando a uma inteligência tão sobre-humana que seria incompreensível para os nossos pobres cérebros dependentes de sinapses bioquímicas.
Uma estranha mistura a tal ponto que o engenheiro e empreendedor milionário do Vale do Silício, Anthony Levandowski – o engenheiro que construiu o automóvel autônomo do Google (criou a empresa Otto de caminhões autodirigidos e que foi adquirida pelo Uber em uma milionária transação em 2016) fundou em 2017 uma corporação religiosa sem fins lucrativos chamada “Way of the Future” cujo princípio tecno-místico assumido é: “Desenvolver e promover a criação de uma Divindade com base na Inteligência Artificial e, através da compreensão e adoração dessa Divindade, contribuir para o melhoramento da sociedade.”
Na verdade, o transhumanismo reflete uma guinada radical na tecnologia na qual a orientação racional (antropocêntrica) foi substituída pelo drive místico e transcendente (pós-humana).
Por exemplo, em Marshall McLuhan os meios de comunicação, assim como as máquinas e tecnologias, na verdade eram extensões do corpo humano: sejam máquinas musculares (ferramentas básicas), máquinas sensoriais (produtores de signos como as mídias) ou as máquinas cerebrais (computadores). Amplificam habilidades, sentidos e percepções humanas.
Tal visão foi superada pela tecnociência contemporânea que supera o princípio ontológico que atribuía prioridade do orgânico sobre o mecânico. As novas criações (biotecnologia, clonagem, nanotecnologia, realidade virtual ou a própria tecnologia computacional) são agora orientadas para a superação dos limites do orgânico.
O homem deixa de ser o centro do progresso tecnológico. Como descreve o engenheiro computacional Jaron Lanier:
Os cientistas da computação são humanos, e são tão aterrorizados pela condição humana como qualquer outro. Nós, da elite técnica, buscamos alguma forma de pensar que nós podemos dar uma resposta à morte. Isso ajuda a explicar o fascínio de um lugar como a Singularity University. O influente Vale do Silício narra uma história que seria assim: um dia, num futuro não muito distante, a Internet vai de repente ser incorporada a uma super Inteligência Artificial, infinitamente mais inteligente do que qualquer um de nós individualmente. Vai se tornar um ser vivo em um piscar de olhos e dominar o mundo antes que os seres humanos percebam o que está acontecendo (LANIER, Jaron, “The First Church of Robotics”, In: The New York Times, 09/08/2010).
Os transhumanistas sustentam que a condição humana de ignorância, solidão, tristeza, doença, velhice e morte pode ser transcendida por meio de dispositivos tecnológicos. Superar os parâmetros básicos da condição humana: finitude, contingência, mortalidade, corporalidade, animalidade e limitação existencial.
Claro que essa agenda tecnomística vem empacotada pelo otimista discurso comercial-empreendeor de Mark Zuckenberg sobre as futuras formas de relacionamento no Metaverso:
Bem, estou empolgado em ajudar as pessoas a entregar e experimentar um senso de presença muito mais forte com as pessoas de quem gostam, com quem trabalham e onde desejam estar. (…) O que a realidade virtual e aumentada pode fazer, e o que o metaverso em geral vai ajudar as pessoas a experimentar, é uma sensação de presença que eu acho que é muito mais natural na maneira como fomos feitos para interagir. E acho que será mais confortável. As interações que teremos serão muito mais ricas, parecerão reais. No futuro, em vez de apenas fazer isso por telefone, você poderá se sentar como um holograma no meu sofá, ou eu poderei sentar como um holograma no seu sofá, e vai realmente parecer que estamos no mesmo lugar, mesmo se estivermos em estados diferentes ou a centenas de quilômetros de distância. Acho que isso é muito poderoso – “Mark in the Metaverse”.
Zuckenberg tem a convicção de que o metaverso dará “uma sensação de presença mais natural na maneira COMO FOMOS FEITOS para agir”. Zuckenber acredita num destino manifesto tecnognóstico. Está nas entrelinhas do discurso do CEO de que toda a evolução humana aguardou por isso: superar as limitações corporais (orgânicas, espaciais e temporais) no Eu descorporificado. Nessa simples frase, estão cristalizadas todas as tecno-utopias seminais de William Gibson e Robert Jawstron de 40 anos atrás.
Esse otimismo empreendedor de Zuckenberg de dar às pessoas aquilo que supostamente elas precisam oculta o drive místico de toda a tecnoreligião: abandonado os nossos corpos, nos tornaremos “sujeito pneumático”, forma de subjetividade que se pretende libertar dos limites do corpo, self quase divino e de natureza espiritual (pneuma). Dotado de comunicação total, como anjos incorpóreos vagando pelo ciberespaço sem barreiras para comunicar-se.
O otimismo liberal-empreendedor do CEO do Facebook, e de resto de todos os novos apóstolos da tecno-religião do Vale do Silício, mascara dois perigos do transhumanismo:
(a) O self descorporificado
O self divino e descorporificado pós-humano simplesmente descarta o corpo e o orgânico como erro ou ruído evolutivo. Porém, como alerta Michel Heim no livro “Metaphysics of Virtual Reality” (Oxford Press, 1993), sem aquelas espécies de âncoras corporais para o Eu (finitude, temporalidade etc.) temos o crescimento da amoralidade a partir do momento em que os limites físicos com o Outro desaparecem. O corpo é a base cinestésica de toda ética e moralidade.
“O que não é assumido, não pode ser redimido”. Com isso o teólogo Irineu de Lyon (180 d.C.) quis dizer que Jesus não veio para esse mundo com uma pilha cervical, foi crucificado e o conteúdo do “cartucho” retornou ao seu Pai. Ele levou também as cicatrizes do sofrimento corporal. Aquilo que define o orgânico (finitude, temporalidade e senso de fragilidade) não são os limitadores da evolução espiritual – compõem o nosso próprio self, porque os percebemos através dos nossos sentidos físicos, janelas abertas da alma.
Zuckenberg e todo o Vale do Silício querem que nos tornemos tal como as mônadas metafísicas do filósofo Leibniz (1646-1716, cuja descrição do primeiro sistema de numeração binária, é utilizada hoje na codificação digital): Fechadas em si mesmas (“mônadas não possuem janelas”, escrevia Leibniz) onde até são capazes de perceber a “realidade” (na verdade outras mônadas), mas as percebem segundo seus “apetites” ou “vontades”.
O metaverso, portanto, seria a realização máxima da agenda solipsista do transhumanismo.
(b) A distopia do “Grande Reset Global”
Todo esse otimismo liberal-empreendedor que imagina usuários descorporificados fazendo reuniões de negócios, vendendo e comprando produtos e entretendo-se em jogos imersivos em realidades aumentadas e realidades virtuais também parece mascarar outra questão: mas afinal, quem é o dono do hardware?
Os norte-americanos costumam dizer que “não existe almoço grátis”. Como apontamos no início desse artigo, a agenda transhumana do Vale do Silício é apenas uma faceta daquilo que o Fórum Econômico Mundial chama de “Grande Reset Global” – a reconfiguração distópica do Capitalismo marcada pela exclusão de grande contingente populacional (nem para ser explorados servirão), concentração extrema de riqueza e o Estado reduzido a uma plataforma de vigilância, controle e engenharia social.
Nesse contexto, a agenda transhumanista cai como uma luva ao transpor selfs descorporificados para metaversos – se hoje nossos hábitos, atitudes e escolhas se transformam em big data nas redes sociais, em metaversos NÓS viraremos big data.
O corpo é o que ainda nos confere liberdade e individualidade. Transformados em anjos incorpóreos vagando pelo cyberespaço, nosso próprio self se converterá em Big Data. Se hoje ainda são necessários técnicas psicométricas para mineração de big data, com o metaverso a transparência será total e imediata – o nosso próprio vir-a-ser se constituirá em informação.
Não precisa ser nenhum escritor distópico como George Orwell ou Aldous Huxley para imaginar as implicações políticas dessa religião transhumanista transformada em realidade.
FONTE: CINEGOSE BLOGSPOT