Apesar de a oferta de contratos de Fies (Financiamento Estudantil) passar por reduções e de a inadimplência no programa aumentar, o governo federal ainda não acionou os recursos de um fundo criado para cobrir calotes. O dinheiro poderia amenizar os desafios de sustentabilidade do programa e permitir expansão de oferta de vagas.
O Fundo Garantidor do Fies, cuja operação teve início em 2011, acumula um patrimônio líquido de R$ 11,6 bilhões, segundo balancete mais recente, de junho. O governo federal não tem, até agora, um sistema para operacionalizar o resgate dos valores.
Entidades que representam as instituições particulares de ensino superior têm pressionado o governo para usar esses recursos. A área econômica sempre teve interesse em manter o dinheiro em caixa, segundo a Folha apurou com profissionais que integraram as gestões Dilma Rousseff (PT), Michel Temer (MDB) e a atual, de Jair Bolsonaro (PSL).
Com o Fies, a União paga o curso para alunos em instituições privadas. Após a formatura, os estudantes precisam quitar o financiamento.
O programa foi lançado em 1998 e passou por mudanças, a partir de 2010, que facilitaram o acesso ao financiamento. A redução da taxa de juros e o aumento do prazo de carência resultaram em grande expansão, mas o salto foi também impulsionado pela criação do Fundo Garantidor.
O fundo facilitou o acesso a fiador e, a partir de 2014, as empresas educacionais tiveram que aderir a esse modelo de fiança para ter alunos no programa. Cerca de 5% dos valores financiados passou a ser depositado no Fundo. O valor era repassado pelo Tesouro, mas descontado do que seria pago às empresas educacionais.
De 2010 até o ano passado, 1.991.232 contratos do Fies foram garantidos pelo Fundo, de acordo com dados obtidos pela Lei de Acesso à Informação. Isso representa que 78% dos mais de 2,5 milhões de contratos acumulados entre 2010 e 2018 têm essa garantia.
Essa poupança deveria ser acionada assim que houvesse inadimplência superior a um ano. Há 425,9 mil contratos nessas condições.
Outros 96.461 contratos estão com atrasos que vão de 91 dias a 360 dias. O saldo devedor (de inadimplência acima de 90 dias) é de R$ 2,2 bilhões. O saldo devedor total, calculado a partir de um dia de atraso, é de R$ 11,2 bilhões, segundo o MEC.
O programa, que no auge, em 2014, chegou a ter 732 mil novos contratos, sofreu encolhimento no segundo mandato de Dilma (2014-16) e também passou por mudanças sob Michel Temer (2016-18). O descontrole de gastos, no primeiro mandato de Dilma, fez com que o acesso aos financiamentos fosse reduzido.
No primeiro semestre de 2019, foram firmados 46.189 novos contratos. “O governo faz alarde da inadimplência e de quanto ele tem que gastar com o Fies, mas, se acrescentasse esse valor do Fundo dentro do sistema, conseguiria ampliar a oferta para os alunos”, diz Rodrigo Capelato, diretor executivo do Semesp (Sindicato das Mantenedoras de Ensino Superior).
Sólon Caldas, da ABMES (Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior), afirma que o governo tem perdoado dívidas de setores como agricultura e indústria, mas não tem o mesmo olhar para a educação. “Percebemos que é mais uma decisão mais política do que operacional a não utilização do Fundo”.
Cerca de 18% dos brasileiros que têm de 18 a 24 anos estão no ensino superior. A meta do PNE (Plano Nacional de Educação) é chegar a 33% até 2024 —praticamente o dobro. Os dados e a própria natureza do Fundo Garantidor não permitem indicar, entretanto, um cenário confortável com relação ao passivo negativo do Fies. O Fundo é desenhado para cobrir o equivalente a 10% da inadimplência total do programa.
A expectativa é que o calote continue aumentando. O volume atual de inadimplência acima de um ano representa 39% dos contratos em fase amortização. Em 2016, esse percentual era de 26%. Em 2016 também, o TCU (Tribunal de Contas da União) estimou um custo, a ser dividido de 2016 a 2020, de R$ 55,4 bilhões só para manter contratos assinados até 2015.
Além disso, as regras vigentes do Fies entre 2010 e 2014, com juros abaixo da inflação, implicaram, na prática, em subsídio federal de 47% do valor financiado —mesmo que todas as dívidas fossem pagas. O Fies representou grandes lucros para as empresas educacionais, sobretudo antes das alterações realizadas a partir de 2015. Com repasses do Tesouro garantidos, as instituições passaram a aumentar as mensalidades. Alunos que pagavam mensalidades foram incluídos no programa.
O professor da FGV Celso Napolitano diz que é importante fazer a discussão do uso desses recursos, mas com cautela. “O fundo foi criado para garantir [o pagamento em caso de] inadimplência, não é para financiar as instituições”, diz ele, que preside a Federação dos Professores do Estado de São Paulo. “Agora é que vai começar a surgir os problemas da explosão de contratos de 2014”, diz, referindo-se ao ano em que houve a explosão no número de beneficiários.
As regras antigas previam carência de um ano e meio após o fim do curso. Assim, é esperado que um volume considerável de contratos entrem no período de amortização a partir deste semestre. A operacionalização de um sistema de cobrança para devedores sempre foi um ponto de atenção do Fies. O governo iniciou em abril um processo para renegociação de dívidas.
Como o devedor precisa pagar no mínimo R$ 1.000 para conseguir renegociar, o governo tem tido dificuldade de obter adesão à iniciativa. Até 25 de maio, menos de 1% dos devedores haviam aderido, revelou a Folha. O Ministério da Educação ampliou o prazo até outubro, mas não informou o balanço atualizado.
De acordo com a gestão do ministro da Educação, Abraham Weintraub, “houve uma mudança do banco que o administrava. e assim que esse processo for concluído a pasta pretende utilizar o recurso [do Fundo Garantidor] para dar maior sustentabilidade ao Fies”.
A partir de 2018, o Fundo passou a ser gerido pela Caixa em lugar do Banco do Brasil, que o operava desde sua criação. A Caixa não respondeu a questionamentos feitos pela reportagem. Também a partir do ano passado o governo criou um novo fundo garantidor, chamado de FG-Fies, na esteira das mudanças realizadas no programa. Esse novo mecanismo tem como objetivo cobrir até 25% da inadimplência.