A pandemia de Covid-19 acendeu uma luz amarela no caixa das instituições de ensino superior privado. Lei sancionada no Estado do Rio, que determina corte de até 30% nas mensalidades, agravou o desafio financeiro. Já pressionado em razão da recessão dos últimos anos — com recuo no número de matrículas — o freio na economia fez a inadimplência saltar e está levando jovens a adiarem o sonho de ingressar na faculdade. Vai avançar a consolidação do setor, dizem especialistas, o que começa a ocorrer.
Com a interrupção das aulas devido à pandemia, foi preciso migrar os cursos presenciais para o ensino remoto, acelerando a oferta de ensino a distância (EAD), que já crescia.
— Há quatro anos, vemos quedas no faturamento desse mercado, com (as matrículas da modalidade) presencial caindo, a despeito do avanço no EAD, mas que tem tíquete médio menor e exige escala. Existe correlação entre o desempenho do mercado de ensino privado e a variação do PIB e do emprego. No auge da recessão, o setor retraiu 5% em faturamento — diz Paulo Presse, da consultoria Hoper Educação. — Se a economia brasileira encolher 7,3% este ano, virá novo recuo de 5%, com perda de alunos, inadimplência, instituições à venda.
O setor já sofria com efeitos da recessão, pesando ainda a trava no Fies, programa de financiamento estudantil federal. O número de empresas atuando no EAD cresceu e, com ele, a concorrência.
Risco de fechar as portas
Em abril, a inadimplência chegou a 26,3%, contra 15,3% em igual mês de 2019, segundo o Semesp, que representa mantenedoras do setor.
— Com a inadimplência em 26,3% e redução de 30% nas mensalidades, ao menos 20% não vão conseguir pagar salários de junho. Há grande chance de muitas fecharem as portas — diz Rodrigo Capelato, diretor executivo da entidade. — Não houve redução de custo. O ensino remoto é diferente do EAD, em que as aulas são gravadas e paga-se direito autoral ao professor. Os professores estão trabalhando, sem redução de salário e jornada.
Outro ponto são as dezenas de projetos de lei em tramitação pedindo descontos de 10% a mais de 50% nas mensalidades. Na última semana, o governador do Rio, Wilson Witzel, sancionou lei que prevê corte de até 30%.
A Associação Brasileira de Mantenedoras do Ensino Superior (ABMES) está ajuizando ação direta de inconstitucionalidade (Adin) no Supremo Tribunal Federal (STF), questionando a decisão.
— Não enxergamos parâmetro no cálculo desses percentuais. Recomendamos negociação caso a caso. O desconto linear prejudica quem mais precisa. E pode inviabilizar instituições — diz Sólon Caldas, diretor executivo da ABMES.
A técnica de enfermagem Beatriz Moraes, de 25 anos, cancelou a matrícula:
— Estou trabalhando demais, num cenário psicologicamente desgastante. Já fica difícil focar em aulas a distância. Mas pesou o dinheiro, que ficou mais curto em casa — diz ela, que espera retomar a graduação em Enfermagem no próximo semestre.
Em abril, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) já alertava que medidas para redução linear de mensalidades podem resultar em problemas financeiros para as instituições, redução de salário ou demissão de professores, insolvência e concentração no setor. E levar à alta nas mensalidades após a pandemia.
O Procon-RJ defende a mediação entre faculdades e alunos. Mas notificou instituições que acumularam centenas de reclamações de alunos.
— Pedimos informações para avaliar se a mudança do ensino presencial e remoto permitia desconto. A Estácio alegou não poder nos abrir informações por ter capital em Bolsa. Iniciamos uma ação civil pública, que foi acompanhada pela Defensoria Pública. A Justiça deferiu liminar determinando desconto de 15% — diz Cássio Coelho, do Procon-RJ.
Questão de escala
A Estácio está recorrendo na Justiça das duas ações e diz que oferece bolsas a mais de dez mil alunos.
Já a centenária Candido Mendes pediu recuperação judicial mês passado. Com R$ 400 milhões em dívidas, viu a inadimplência bater em 25% e o faturamento recuar 30% em março.
— Reduzir em 30% a mensalidade é inviável. Ampliamos a oferta de bolsa aos mais vulneráveis e flexibilizamos débitos — conta Cristiano Tebaldi, pró-reitor comunitário da universidade.
O desafio é a escala. Entre 2008 e 2018, a proporção de alunos em cursos de EAD foi de 11,8% do total no ensino superior para 42%. Mas o preço médio da mensalidade está em R$ 249,90, um terço do valor dos cursos presenciais, de R$ 736, apurou a Hoper.
Das 2.238 instituições de ensino superior privado no país, segundo dados de 2018, 63,4% têm até mil alunos.
— Para ser sustentável, a instituição precisa ter ao menos 1.600 matrículas presenciais. Mas grande parte atua na educação básica, na qual o problema na pandemia é mais grave. Daí a importância da operação no EAD — diz Presse.
Na educação básica, Carlos Monteiro, especialista em gestão e planejamento de ensino, diz que as escolas privadas não estavam preparadas para a virada de chave:
— No Brasil, era só modelo presencial ou EAD. As instituições vão ter de se reinventar ou desaparecer.
Ano passado, quando o Ibovespa subiu 31,58%, as ações das empresas de educação acompanharam. Os papeis da Yduqs, dona de Estácio e Ibmec, subiram 95%. Os da Ser Educacional tiveram alta de 89%. Os da Ânima avançaram 65%. A Cogna, de Kroton e Somos Educação, subiu 25%.
Perda de R$ 16 bi na bolsa
Este ano, o desempenho é negativo para todas. Juntas, perderam mais de R$ 16 bilhões em valor de mercado.
— O aumento do desemprego e a perda de renda da população vão trazer restrições ao orçamento das famílias, e será uma provação para o modelo de negócios dessas instituições de ensino — prevê Ilan Arbetman, analista da Ativa Investimentos.
No primeiro trimestre, a Ânima foi uma exceção no setor com alta de 9,7% no lucro, reflexo da opção por cursos híbridos, com um percentual de conteúdo digital, no lugar do EAD padrão. O que vem puxando aumento na base de alunos e no tíquete médio.
— Cada vez mais, o aluno vai determinar como, quando e em que suporte quer estudar — diz Marcelo Battistella Bueno, presidente da Ânima. — A pandemia exige aporte em tecnologia. Contratamos seguro educacional e temos novas modalidades de financiamento. Para o retorno às aulas, precisamos investir mais.
A onda de aquisições já começou, sobretudo em Medicina. É o caso da aquisição do Grupo Athenas pela Yduqs semana passada, por R$ 120 milhões. E da compra da mineira Faculdade da Saúde e Ecologia Humana (Faseh), por R$ 108,9 milhões, pela Ânima.
Fonte: |ABMES
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