Híbrido não é uma modalidade de ensino, muito menos um formato de oferta: híbrido é a essência da educação. Esta afirmação não é uma provocação retórica, mas a expressão de uma realidade que se impõe, cada vez mais, às instituições de ensino, aos educadores e aos próprios marcos regulatórios. A aprendizagem nunca se deu de forma linear, estanque ou confinada a uma única lógica temporal e espacial. Ensinar e aprender sempre foi, por natureza, um processo híbrido: uma combinação dinâmica entre tempos (síncronos e assíncronos), espaços (presenciais e digitais), linguagens, sujeitos e contextos.
A educação híbrida, tal como a concebemos hoje, não deve ser entendida como um modelo de oferta ou uma modalidade de ensino ou uma simples mistura operacional entre o presencial e o remoto. Trata-se, antes, de um princípio estruturante da prática pedagógica contemporânea — e de uma concepção de aprendizagem que reconhece a complexidade, a ubiquidade e a pluralidade dos saberes no século XXI. Por isso, limitar o híbrido a uma categoria regulatória seria subestimar seu potencial formativo e institucional.
Entretanto, mesmo diante desse novo marco regulatório, é imprescindível reconhecer um princípio pedagógico fundamental que atravessa todos os formatos e que nenhuma classificação normativa pode capturar em sua totalidade: a natureza híbrida da educação. Híbrido não é uma modalidade de ensino, muito menos um formato de oferta: híbrido é a essência da educação. Trata-se de um traço constitutivo da experiência formativa, que sempre se deu — e continuará a se dar — em espaços de combinação, mediação, negociação e construção coletiva entre tempos, territórios, sujeitos e saberes.
Desde as primeiras formas de aprendizagem humana, ensinar e aprender sempre se realizaram por meio de múltiplas interações: presenciais ou remotas, formais ou informais, mediadas por tecnologias rudimentares ou sofisticadas. A escola moderna, ao organizar a aprendizagem em tempos e espaços fixos, produziu a ilusão de homogeneidade. No entanto, a prática pedagógica nunca foi linear: um mesmo conteúdo pode ser assimilado de forma distinta por diferentes estudantes; uma mesma aula pode gerar interpretações diversas; uma mesma estratégia pode ser simultaneamente presencial, digital, discursiva, afetiva e simbólica.
O que chamamos hoje de “ensino híbrido” não é uma invenção do século XXI, mas a visibilização contemporânea de uma característica estrutural da educação: sua condição de mistura. A conectividade digital apenas tornou mais evidente e mais potente essa lógica de articulação entre tempos (síncronos e assíncronos), espaços (físicos e virtuais) e formas de presença (material e simbólica, individual e coletiva, ativa e reflexiva). Nesse sentido, o hibridismo não deve ser confundido com uma “quarta modalidade” ou com um novo rótulo normativo, mas sim reconhecido como um princípio estruturante da educação em qualquer contexto.
O desafio das instituições, portanto, não está apenas em se adequarem aos percentuais de presencialidade definidos pela regulação, mas em compreender o híbrido como campo pedagógico vivo, onde a mediação docente se transforma em curadoria ativa; onde o conteúdo se desdobra em experiência; onde a avaliação se articula com o desenvolvimento de competências; e onde o estudante se torna sujeito do próprio processo de aprendizagem.
Nesse cenário, o novo marco regulatório pode — e deve — ser interpretado como uma moldura externa que sustenta, mas não limita, a criatividade pedagógica e a inovação institucional. Mesmo sem mencionar explicitamente o termo “híbrido”, o Decreto nº 12.456/2025 e a Portaria MEC nº 378/2025 incorporam, em sua estrutura conceitual, os fundamentos do hibridismo educacional. A exigência combinada de atividades presenciais, síncronas mediadas por tecnologia e assíncronas digitais revela uma compreensão de que o processo formativo contemporâneo se realiza não apenas em múltiplos tempos e espaços mediados, mas também em diversas formas de presença, de interação e de construção de sentido. São múltiplos os sujeitos, as mediações, os ritmos, os contextos e os repertórios que se entrelaçam na formação universitária atual. Assim, ainda que ausente da nomenclatura, o conceito de hibridismo está presente na essência do marco, traduzindo-se em uma política que, ao mesmo tempo, regula a estrutura e reconhece a complexidade da experiência educativa como fenômeno relacional, plural e dinâmico. Dentro dos percentuais definidos por área e por formato, existe margem legítima e desejável para a construção de propostas curriculares que articulem práticas síncronas e assíncronas de forma significativa, que combinem espaços formais e informais de aprendizagem, e que desenvolvam inteligências múltiplas em diálogo com os desafios do presente.
É nesse ponto que o conceito de hibridismo deixa de ser apenas técnico e passa a ser estratégico. Instituições que compreendem o híbrido como essência — e não como modismo — são aquelas que não apenas operam nas três modalidades reconhecidas legalmente, mas que investem em ambientes educacionais ubíquos, flexíveis e intencionais, que reconhecem a diversidade dos estudantes e que reconfiguram suas práticas com base em dados, escuta ativa e visão de futuro.
Em suma, a regulação estabelece os contornos. A pedagogia os preenche com sentido. E a essência híbrida da educação nos lembra, todos os dias, que ensinar e aprender é sempre um exercício de mediação, entre pessoas, linguagens, tempos e mundos. Reconhecer isso é o primeiro passo para construir um novo ciclo de legitimidade, inovação e impacto social duradouro na educação superior brasileira.
Por isso, o novo marco regulatório, ao definir com clareza os três formatos de oferta (presencial, semipresencial e a distância), ao estabelecer os percentuais mínimos e máximos de carga horária presencial, síncrona e assíncrona, e ao reforçar a obrigatoriedade de avaliações presenciais com critérios discursivos, funciona como um referencial legal que fortalece a integridade da prática educativa sem inibir a inovação. Cabe às instituições interpretar esse arcabouço não como uma camisa de força, mas como uma plataforma de responsabilidade compartilhada, onde regulação e projeto pedagógico caminham lado a lado.
Assim, as IES que compreenderem o híbrido como essência educacional — e não como conveniência operacional ou resposta conjuntural — estarão mais bem preparadas para promover transformações estruturantes em seus modelos acadêmicos e organizacionais. Não se trata apenas de alternar formatos ou redistribuir cargas horárias entre momentos presenciais e digitais, mas de revisar profundamente os fundamentos da prática pedagógica, colocando o estudante no centro de experiências formativas conectadas, contextualizadas e intencionalmente mediadas. Isso exige metodologias ativas e flexíveis, dispositivos avaliativos coerentes com o desenvolvimento de competências complexas, práticas docentes sensíveis à diversidade dos sujeitos e um ecossistema institucional que articule tecnologia, cuidado e propósito. Nesse horizonte, o híbrido não é uma adaptação ao regulatório, mas um projeto de educação responsiva, inclusiva e estrategicamente posicionada para lidar com os desafios de um mundo em transformação acelerada. Ao articularem inovação pedagógica e responsabilidade normativa de forma consciente e integrada, as instituições não apenas cumprem as exigências legais, mas elevam os padrões de qualidade educacional, ressignificam a presença institucional e expandem as possibilidades formativas que a regulação, por si só, não poderia prever.
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